14 Julho 2015
Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, comenta o Encontro temático sobre a atuação das mulheres na promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional realizado na semana passada, em Porto Alegre.
Eis o artigo.
Porto Alegre sediou nesta semana um “Encontro temático sobre a atuação das mulheres na promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional” convocado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). A pauta principal visou avaliar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) daquele Ministério, o grau de efetividade das suas metas, se ele está realmente levando comida para todas/os as/os brasileiras/os, especialmente as/os mais pobres.
Uma expressiva representatividade plural dos movimentos populares que defendem o direito de toda pessoa se alimentar marcou significativamente o encontro. O Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF), da Via Campesina, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (FETAG), da Marcha Mundial das Mulheres, entre outros grupos femininos de atuação na produção e na partilha de alimentos marcaram presença ativa analisando estudos e propostas sobre todos os problemas relacionados com a fome no Brasil e o papel das mulheres no enfrentamento e na solução deles.
Os dados revelados pelo site convocatório desta reunião animam a esperança de uma crescente participação da agricultura familiar alimentando as/os brasileiras/os entre os quais, claro, aquelas/es que se encontram na linha da pobreza ou abaixo dela. Lê-se nesse site:
“A representatividade das mulheres na garantia ao direito humano à alimentação adequada é expressiva no país. No Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a participação das mulheres cresceu. Em 2009, elas representavam 21% dos fornecedores. De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o número de fornecedoras subiu para 50%, em 2014. Os dados mostram que, na região Nordeste, a participação feminina no PAA é de 60%. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em 93% das 14 milhões de famílias que recebem a transferência de renda, as mulheres são as responsáveis pela retirada do dinheiro. Dessas, 68% são mulheres negras”.
Um decreto recente do governo federal (8.473, de 22 de junho de 2015) estabelece no âmbito da Administração Pública Federal um percentual mínimo destinado à aquisição de gêneros alimentícios de agricultoras/es familiares e suas organizações, empreendedoras/es familiares rurais e demais beneficiárias/os da lei 11326 de junho de 2006, justamente aquela que regularizou esse tipo específico de produção de alimentos, em âmbito familiar.
São providências que, espera-se, continuem aumentando o número de quem se livra da fome no Brasil, como o mapa dessa inaceitável injustiça social, publicado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO/ONU – encoraja seja feito, pois lá o país já não figura, como território onde a fome ainda domina.
Uma conquista dessa importância só pode ser valorizada, na medida em que o empenho pela erradicação completa da fome não pare por aí, como as mulheres reunidas neste evento mostraram-se dispostas a fazê-lo.
Do ponto de vista estritamente jurídico, a soberania alimentar reduz-se a uma previsão sem nenhum sentido se não for garantida pela segurança alimentar. Sem comida na mesa, saudável e suficiente, não há se falar em soberania. É condição fática indispensável ao reconhecimento de todo o ser humano dotado de dignidade a de ele se alimentar todos os dias, mas não de cidadania enquanto uma necessidade vital como essa não estiver assegurada. E assegurada, por um tratamento respeitoso da terra, uma agroecologia que não a explore de forma predatória, não a envenene com agrotóxicos, não a trate como reles mercadoria destinada exclusivamente à geração de lucro. Se é a agricultura familiar que alimenta o país, seu modelo não deve ser o do agronegócio exportador, porque esse, comprovadamente, não está preocupado em satisfazer uma necessidade vital como essa. Daí a urgência da reforma agrária pela qual a partilha da terra abriria espaço para uma utilização mais humana desse bem.
Isso é o que se pode depreender de estudos como o de Írio Luiz Conti, representante da Organização pelo Direito à Alimentação Adequada – FIAN/Brasil, e Benvenuto Zetterström (lembrado pelo mesmo Írio) em um artigo publicado na coletânea “Direitos Humanos desde Passo Fundo” pela Comissão de Direitos Humanos daquele município, em 2004:
“A FIAN/Brasil utiliza o termo direito humano a se alimentar ao invés de direito humano à alimentação por entender que este expressa melhor o sentido dinâmico do conceito. O ser humano tem direito às condições para ser sujeito da produção ou da compra de seu próprio alimento. O segundo conceito pode permitir interpretações e práticas passivas: se alguém tem fome outro alguém deve providenciar alimentação. […] Segurança Alimentar e Nutricional consiste em garantir a todos condições de acesso a alimentos básicos, seguro e de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo assim para uma existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana. […] Por soberania alimentar entende-se o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população”.
Dom Mauro Morelli, por outro lado, também referido no mesmo texto, resume tudo o que se encontra em causa em matéria de comida: “Sentir fome quando se tem comida é uma beleza. Não ter fome, um problema de saúde. Não ter comida, uma violação de um direito humano básico. Comer é uma necessidade e um direito. Ninguém vive sem pão e sem beleza”.
A Constituição Federal brasileira, para vergonha nossa, foi promulgada em 1988 sem mencionar o direito à moradia e à alimentação como direitos humanos fundamentais sociais. A moradia só foi prevista no artigo 6º em 2001, pela emenda 26, e a alimentação só alcançou entrar lá pela emenda 64 de 2010. Esses sinais históricos provam o quanto há de resistência da nossa legislação em aceitar como direitos aqueles inerentes a própria vida da pessoa. Diferentemente dos patrimoniais, as garantias devidas aos sociais só alcançam alguma chance de se efetivarem por pressões externas organizadas por movimentos sociais como esses que se reuniram em Porto Alegre.
Por isso, espera-se que o MDS, respeitado o próprio sentido da palavra audiência, esteja aberto a um diálogo franco, propositivo, capaz o suficiente de implementar os seus programas públicos afinado com o que ali tiver ouvido das mulheres organizadas em defesa do direito humano fundamental a se alimentar. Seu sucesso há de ser garantido não pelo que tiver feito para elas, mas sim o que planejar, executar e avaliar com elas.
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Encontro de Mulheres pela Soberania e Segurança Alimentar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU