Por: André | 24 Junho 2015
“Não é somente uma encíclica sobre o meio ambiente. É uma contribuição estimulante para um sério debate público sobre o mundo e o tipo de vida que queremos.”
A análise é de Víctor Manuel Fernández e publicada por La Nación, 19-06-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
A aguardada encíclica de Francisco sobre o meio ambiente toca tantos interesses – mais ideológicos que econômicos – que alguns, por via das dúvidas, saíram para criticá-la antes mesmo de lê-la. Este simples fato deveria motivar uma leitura atenta de um documento onde não aparece só o pastor, mas também o agudo pensador.
Embora suponha a beleza do Evangelho, dialoga constantemente com a biologia, com a pedagogia, com a engenharia, com a psicologia social, com a filosofia e com as preocupações do mundo. Sabemos pelo Francisco que um primeiro rascunho, proposto pelo Pontifício Conselho de Justiça e Paz, foi logo amplamente superado por ricas contribuições e demandas de mais de 200 especialistas e instituições de todo o mundo.
Trata-se de uma rede de vários capítulos que trazem luzes diferentes desde perspectivas muito variadas. Passa de uma aguda descrição da realidade à política ou à espiritualidade, não como um mero rejunte, mas em cuidadosa filigrana onde tudo se integra apontando para um mesmo objetivo: o “cuidado”, uma das palavras preferidas de Francisco. Nesta polifonia, o Papa continua com sua inovadora atitude de citar os bispos de muitos países, e até se dá ao luxo de recolher o ensinamento de um patriarca que não é católico romano e de citar um místico muçulmano.
É indispensável a leitura direta do texto para perceber a harmonia do conjunto. No entanto, quisera destacar algumas novidades:
a) As colocações sobre o meio ambiente estão estreitamente conectadas com as reivindicações sociais dos pobres e dos países menos desenvolvidos, de maneira que a questão ambiental se situa no marco do “reconhecimento do outro”.
b) Propõe uma ecologia integral que incorpora de maneira interdisciplinar os múltiplos aspectos da problemática: econômicos, culturais, sociais, etc. c) A reflexão é profundamente humanista, tanto porque recolhe o pensamento do filósofo Romano Guardini, como por uma aposta educativa orientada a nos libertar da atual “cultura do descarte”.
Deste modo, pretende chegar às raízes mais profundas da problemática ambiental. Seria muito superficial afirmar que é uma encíclica contra a tecnologia, porque “ninguém pretender voltar à época das cavernas” (114). Mais precisamente, é um implacável questionamento do tremendo poder ligado ao paradigma tecnológico-econômico atual, que condiciona a vida das pessoas e o funcionamento da sociedade. Por isso, exige que se reconsidere o modo de entender o progresso.
O texto é muito equilibrado, a ponto de que qualquer comentário corre o risco de “desequilibrar a balança”. Por um lado, declara que não pretende definir questões científicas, e respeita a liberdade acadêmica de quem tem que discutir assuntos como os grãos geneticamente modificados. No entanto, é sumamente exigente e crítico com respeito às questões sociais e humanas que nos cercam: a falta de diversidade produtiva, a contaminação, os oligopólios, os direitos das populações locais, etc. E denuncia que nestes temas é comum oferecer uma informação tendenciosa: “Seleciona-se as informações de acordo com os próprios interesses, sejam políticos, econômicos ou ideológicos” (135).
A inclusão dos pobres reaparece permanentemente, por exemplo, quando pede para substituir a dádiva pela criação de postos de trabalho. Expressa com eloquente dor o constante desaparecimento de espécies “que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre” (33). Mas onde se apresenta mais profético é naquilo que se refere à mudança climática, repreendendo duramente a política internacional: “Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum” (54).
Embora o alvo fundamental de sua crítica seja o poder tecno-econômico, também convoca os poderes políticos para não se resignarem diante da sua responsabilidade: “Os projetos políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?” (57).
Em outros parágrafos não é apenas a política que aparece interpelada, mas a sociedade em seu conjunto: “o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não vê-los, luta para não reconhecê-los, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido” (59).
Francisco mostra como a luz da fé potencia o compromisso com o ambiente. Basta recordar estas palavras de Jesus: “Não se vendem cinco pássaros por duas moedas? Pois bem, nenhum deles será esquecido por Deus” (Lc 12,6). Mas é preciso destacar, sobretudo, algumas convicções racionais que penetram o conjunto das reflexões. Por exemplo: a certeza de que “tudo está conectado” e de que por isso nenhum fenômeno pode ser compreendido de maneira isolada; o convencimento de que cada ser deste universo tem algum sentido, algum significado, alguma utilidade e alguma mensagem para nos comunicar; a certeza de que a “qualidade de vida” é muito mais que a proposta de um consumismo voraz e superficial; a persuasão de que dependemos de uma realidade anterior a nós, que deve ser, sobretudo, recebida mais que fabricada. Por isso, não é somente uma encíclica sobre o meio ambiente. É uma contribuição estimulante para um sério debate público sobre o mundo e o tipo de vida que queremos. Vale a pena que deixemos ressoando estas palavras que são escritas para a nossa reflexão:
“Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Por isso, já não basta dizer que devemos nos preocupar com as gerações futuras. (...) Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que vai nos suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra” (160).
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Laudato Si’. Há um emaranhado de vozes que tocam múltiplos interesses - Instituto Humanitas Unisinos - IHU