Por: Cesar Sanson | 23 Junho 2015
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou há poucos dias relatório onde recomenda a conclusão dos procedimentos demarcatórios das terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Com base nas leis vigentes, envolvendo a Constituição e tratados internacionais, o conselho também faz propostas complementares para auxiliar na resolução dos conflitos fundiários, responsáveis pela violência contra os indígenas, rechaçando teses como o marco temporal. Minucioso, o trabalho, iniciado no 1º semestre de 2011, foi executado pela Comissão sobre a Questão Indígena em Mato Grosso do Sul, que realizou reuniões, seminários e visitas às comunidades.
A reportagem é de Renato Santana e publicado pelo portal do Cimi, 22-06-2015.
“Com uma Constituição em plena vigência (...) não se pode conceber que haja resistência contra o cumprimento da Lei Maior”, afirma trecho do relatório. Os trabalhos da comissão demonstram que “mesmo após históricas decisões do Supremo Tribunal Federal reafirmando o direito à demarcação com o estabelecimento de critérios para o procedimento, inclusive impondo várias limitações ao próprio direito reconhecido, os atos de violência não cessaram, ao contrário foram acirrados ao ponto de ceifar vidas, o que não pode ser admitido”. Durante a atuação da comissão, assassinatos contra indígenas, ameaças e atentados não deixaram de ocorrer, caso de Oziel Terena, durante ação de reintegração de posse, e Nísio Guarani e Kaiowá, em ataque de pistoleiros.
Sobre as violências sofridas pelas comunidades indígenas, o relatório atesta: “Se é correto afirmar que aqueles que, de boa-fé ocupam as terras consideradas indígenas têm o direito de defender seus direitos através das medidas judiciais que lhes são postas à disposição pelo próprio ordenamento jurídico (...) não é menos verdadeiro afirmar que não poderão fazê-lo por intermédio da intimidação ou da violência”. O documento expressa que é um direito dos povos indígenas “verem suas terras demarcadas”, com respaldo em legislação tanto no país, com a Constituição Federal, Decreto 1775, quanto em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, caso da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O CNJ lembra que na promulgação da Constituição foi estipulado um prazo de cinco para que as terras indígenas fossem demarcadas. “Passados mais de vinte anos da promulgação da Carta da República, a determinação do Constituinte ainda não foi cumprida, e quando são sinalizadas algumas providências concretas visando tornar efetiva a norma constitucional, alguns setores da sociedade e indígenas deflagram um movimento de confronto e de resistência que está tomando rumos bastante preocupantes”, diz trecho do relatório. Desse modo, a questão relativa à terra, conforme o CNJ, é o ponto fundamental dos direitos indígenas constitucionalmente garantidos; como sobrevivência cultural e física desses povos.
Marco temporal e judicialização
Para o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar Cupsinski, o relatório mostra ainda a discordância do CNJ com a tese do marco temporal, defendida por alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Um trecho do documenta respalda a opinião de Cupsinski: “O art. 231, da Constituição Federal, ao reconhecer aos indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente habitam, consolidou o entendimento de que essas áreas nunca deixaram de constituir territórios indígenas, limitando-se o poder estatal à obrigação de declarar essa condição. Deste modo, a titulação dessas áreas, cuja tradicionalidade conferiu proteção especial, deu-se em clara violação aos dispositivos constitucionais, ainda que sob a égide da Constituição de 1967/69, visto que o instituto do indigenato remonta ao século XVII”.
“Quero ressaltar esse aspecto, mas sem esquecer que o CNJ foi justo na sua análise: em caso de titulação de boa-fé, é preciso indenizar. No caso dos pequenos agricultores, devem ser reassentados. Na verdade, é o que defende os povos indígenas. As dificuldades são criadas por quem não quer ver as leis de demarcação cumpridas. Optam pela judicialização e apostam em teses como o marco temporal”, ressalta Cupsinski. No relatório do CNJ, números comprovam a estratégia dos grupos que tentam, a todo custo, impedir a demarcação de terras indígenas.
Cerca de 140 ações judiciais envolvendo as demarcações de terras indígenas no Mato Grosso do Sul tramitam em alguma instância do Poder Judiciário. A maioria se encontra na 1ª Instância da Justiça Federal: 52 em Ponta Porã, 23 em Naviraí, 7 em Campo Grande, além de 3 no Tribunal Regional Federal (TRF) de Dourados, 15 no TRF de Naviraí e 11 no TRF de Ponta Porã. Outras 11 ações tramitam no STF, em Brasília. Desse total, 18 ações foram movidas pela Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul).
De um modo geral, tais ações judiciais fazem o efeito desejado por quem não quer a demarcação de terras indígenas: 14 terras entre homologadas, identificadas, declaradas, delimitadas ou registradas no patrimônio da União estão com os procedimentos ou portarias declaratórias suspensas por efeito dessas ações. “Além da paralisação da demanda territorial, vemos as terras já com estudos e encaminhadas invalidadas por decisões judiciais que em alguns casos nem chegamos a ser ouvidos”, relata Lindomar Terena. A Terra Indígena Cachoeirinha, onde vive Lindomar, é uma das que sofre com sequências de ações judiciais. “O resultado é que semanas atrás atiraram contra um grupo de patrícios. Um foi atingido e precisou ser hospitalizado. Quem atirou é quem entra com essas ações na Justiça”, afirma o Terena.
Dez terras indígenas aguardam por providências da Fundação Nacional do Índio (Funai), conforme o relatório do CNJ. Sobre essa grande quantidade de processos judiciais, o CNJ faz um alerta no relatório: “Não se pode esquecer que os conflitos sobre as terras indígenas, que desaguam no Poder Judiciário são conflitos histórica, social e culturalmente diferenciados dos demais conflitos sociais. De fato, não há como perder de vista que a terra – terra-mãe – não é apenas um meio de produção, de geração de riquezas a qualquer custo. Ao contrário, é um lugar da memória coletiva do povo, da sua história, do seu lazer e trabalho, onde celebra os seus rituais de vida e morte, especialmente de vida”.
Para a comissão, os indígenas do Mato Grosso do Sul foram desapossados das terras a eles destinadas de forma exclusiva: “O ‘justo título’ tantas vezes invocados pelos atuais ocupantes dessas terras não serve para descaracterizar a área como terra indígena de ocupação tradicional. Porém, e ao mesmo tempo, ao Estado incumbe o dever de reparar integralmente os atuais proprietários rurais. A indigitada titulação, como é de conhecimento público e notório, foi precedida de um processo de colonização do território da então Província de Mato Grosso, especialmente na região sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul”. O relatório explica que esse processo colonizador aconteceu por incentivos do próprio governo para que brasileiros ocupassem centenas de hectares naquele estado ocupados por aldeias indígenas. Amontoados em reservas, cansaram de viver longe das terras dos ancestrais para iniciar um longo caminho de volta a elas.
“Para a gente essas ações judiciais deixam de levar em conta a história, o que aconteceu e ainda acontece com nosso povo. O governo federal é fraco politicamente e faz as vontades de políticos, fazendeiros. Então só nos resta retomar as terras que reivindicamos. Guarani e Kaiowá e indígena nenhum vive longe de sua terra”, destaca Otoniel Guarani e Kaiowá.
Comissão heterogênea
A comissão foi instituída no 1º semestre de 2011, no âmbito do Fórum de Assuntos Fundiários do CNJ, e foi composta de forma heterogênea: Justiça Federal do MS, integrantes de tribunais regionais federais, Ministério Público Federal (MPF), Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Advocacia-Geral da União (AGU), Fundação Nacional do Índio (Funai), dois representantes das comunidades indígenas, dois representantes dos proprietários rurais e dois especialistas na questão indígena. A coordenação da Comissão coube ao desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul e membro do Comitê Executivo Nacional do Fórum de Assuntos Fundiários do CNJ, Sérgio Fernandes Martins.
O resultado dos trabalhos da comissão, em face de sua composição, demonstra, na opinião das lideranças indígenas, que a demarcação das terras indígenas é a única alternativa para a resolução do conflito, como afirma o relatório: “Não é por outra razão que o Preâmbulo da nossa Carta Cidadã de 1988 estabeleceu como fundamento do Estado Democrático Brasileiro a “harmonia social”, e ao qual foi atribuída a magna missão de (...) assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
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CNJ recomenda conclusão das demarcações de terras indígenas em MS e condena violência de fazendeiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU