Por: André | 12 Junho 2015
O magistério de Francisco e sua próxima encíclica já estão sendo atacados abertamente pelos católicos mais conservadores dos Estados Unidos. Mas, pessoas próximas a ele também respondem abertamente que é farisaísmo esconder-se atrás de um fanático antiabortismo. E a revista National Catholic Reporter (NCR) destaca este conflito em um editorial publicado no dia 04 de junho de 2015.
O editorial está publicado por Iglesia Viva, 07-06-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o editorial.
Foi uma afirmação ousada, até mesmo audaciosa, aquela do então cardeal Jorge Mario Bergoglio feita em uma intervenção durante a semana anterior ao conclave que o elegeu papa: criticou uma Igreja autorreferencial que sofre de uma espécie de narcisismo teológico e, o que é pior, de vaidade espiritual. O antídoto seria, segundo ele, ultrapassar os limites da estrutura da Igreja e ir às periferias, geográficas e espirituais, para estar com os marginais e marginalizados.
Foi um apelo para um renovado compromisso com o mundo, não baseado na suspeita e numa entediante crítica das culturas, como aconteceu tantas vezes nos últimos 35 anos, mas no amor e no zelo evangélico, que requerem contato com os seres humanos em tempo real e em todas as circunstâncias.
Obviamente, estas palavras devem ter ressoado em seus companheiros, que o elegeram papa. Às vezes é difícil discernir como todas estas palavras são traduzidas no governo do dia a dia. Não se concretizaram ponto por ponto na agenda da reforma, mas as linhas gerais tomaram forma durante os dois últimos anos, e as últimas semanas estiveram cheias de exemplos, envolvendo em alguns momentos os círculos mais próximos a ele.
O Centro para a Família e os Direitos Humanos, um dos muitos grupos de extrema direita que veem o mundo através de uma estreita seteira, criticou duramente o fato de que a Pontifícia Academia de Ciências acolhesse no Vaticano o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon e o economista estadunidense Jeffrey Sachs [1] em uma recente conferência sobre a mudança climática. A acusação se fundava em que Sachs e as Nações Unidas não são tão puros no tema do aborto como gostariam o Centro da Família e dos Direitos Humanos e outros grupos antiabortistas.
A novidade neste caso foi que o arcebispo Marcelo Sánchez Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia de Ciências, respondeu com clareza à crítica. “O Tea Party e todos aqueles cujas entradas provêm do petróleo nos criticaram, mas não meus superiores, que, ao contrário, me apoiaram, alguns deles participando inclusive dos atos”, disse.
Respondendo diretamente à acusação de colaborar com aqueles que não têm a mesma opinião que a Igreja na questão do aborto, Sorondo disse: “Infelizmente, não existe apenas o drama do aborto, mas estão aí todos os outros dramas, pelos quais vocês deveriam se interessar, porque todos estão estreitamente relacionados. A crise climática leva à pobreza e a pobreza a novas formas de escravidão, a migrações forçadas e às drogas. E tudo isso conduz também ao aborto”, disse.
“Em vez de nos atacar, por que não entram em diálogo com esses ‘demônios’ para convencê-los para que melhorem a maneira como são formulados os problemas”, continuou.
Já era hora! Há muito tempo esperávamos uma resposta tão clara do Vaticano para calar a boca de quem exige que qualquer instância da Igreja se ajuste inflexivelmente a uma suposta ortodoxia de princípios inegociáveis. E é preciso reconhecer que este tipo de resposta era inimaginável antes de Francisco ser papa.
Se a resposta de Sorondo evidenciava a subjacente aprovação papal para repensar os temas e expressar opiniões que poderiam ter sido discordantes em tempos passados, o mesmo foram as palavras do cardeal Luis Tagle em uma conferência que deu em Washington sobre o avanço que significou o Concílio Vaticano II para a maneira de entender a Igreja e sua missão no mundo. O eco de Francisco se fazia ouvir nos comentários do arcebispo de Manila, recém eleito presidente da Caritas Internationalis.
“Muitas pessoas querem ser testemunhas de um Cristo idealizado em um passado, que quiseram prolongar com nostalgia”, disse Tagle. “Não, temos que testemunhar Cristo aqui e agora, no mundo em que estamos... Parte da abertura da Igreja à humanidade é recordar ao resto do mundo os seres humanos que foram esquecidos”.
E esta abertura “significa que nós mesmos vamos ficar sujos, manchados, feridos pelas realidades existenciais” que os pobres enfrentam. “A Igreja deve cheirar como o mundo em que entra em contato”.
No dia seguinte, o cardeal alemão Walter Kasper falou no mesmo encontro teológico sobre o Concílio Vaticano II, organizado conjuntamente pela Catedral Nacional, Universidade de Georgetown e Universidade Marymount em Arlington, Virgínia. Kasper, um notável teólogo e especialista em ecumenismo, cujos escritos tiveram influência sobre Francisco, disse aos participantes que o Papa “deseja um magistério de escuta”, que leve em conta o sensus fidei (também conhecido como sensus fidelium ou “senso dos fiéis”).
Kasper falou com paixão sobre a necessidade de unidade dos cristãos e sobre um ecumenismo pragmático, que não devia consistir em discussões teológicas acadêmicas. Nesse sentido, ele ecoou a mensagem que Francisco dirigiu, no começo da semana, a uma reunião nos Estados Unidos para celebrar o Dia da Unidade dos Cristãos:
“Estou convencido de que não serão os teólogos que vão conseguir essa unidade entre nós. Os teólogos nos ajudam, a ciência dos teólogos nos ilustra”, disse o Papa. “Mas se esperássemos que os teólogos cheguem a um acordo entre si, teríamos que esperar até o dia seguinte ao Juízo Final. É o Espírito Santo quem consegue a unidade. Os teólogos são úteis, mas mais útil é a boa vontade de todos aqueles que estão nesta viagem com nossos corações abertos ao Espírito Santo”.
Kasper pontualizou que a catolicidade significa todos: “homens e mulheres, jovens e idosos, clérigos e leigos. Os leigos não são apenas destinatários, mas também atores. Não são apenas objeto, mas muito mais, são os sujeitos da Igreja”.
Francisco, cuja linguagem desde o princípio teve um forte sentido de movimento, de viagem, de acompanhamento, de ir às fronteiras, colocou a Igreja em marcha de novas maneiras. Povo peregrino é uma imagem menos agressiva que Igreja militante. Os peregrinos – termo que o Vaticano II e outros documentos frequentemente empregam para falar de nós como Igreja – caminham e esperam surpresas, são mais livres para enfrentar e entender as coisas com abertura do que quem é enviado para conquistar e dominar.
Nota:
[1] Um dos maiores críticos deste encontro do Vaticano que preparava a publicação da iminente encíclica Laudato Si, foi um membro do Caminho Catecumenal, Stefano Gennarini, que dirige o Centro da Família ao qual se refere o editorial da NCR. Suas críticas e as respostas do arcebispo encontram-se neste blog: Turtle Bay and Beyond. Posteriormente, Stefano Gennarini criticou asperamente a resposta de Sorondo no portal ultraconservador First Things. E em sua defesa saiu, de forma insólita, a estadunidense professora Margareth Archer, presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais: “Por que você, Gennarini, ataca o argentino dom Sorondo e não me ataca, eu que sou a responsável pelo convite feito aos senhores Sachs e Ban Ki-moon na Academia”. Vale a pena ler esta última parte (por enquanto) do debate no blog da Academia Endslavery. [Nota de iviva.org]
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Uma Igreja peregrina que escuta o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU