09 Abril 2015
Eventos de um mês qualquer em 2014 na Distopia Federativa do Brasil. Relatório 34560007 enviado ao futuro: Policial mata ambulante à queima-roupa, é filmado, e a população assiste à cena em seu celular enquanto estoura a pipoca no microondas. Famílias inteiras são despejadas de um edifício por um estado que protege o bem público apenas quando ele é privado. Na intenção de fazer comédia, emissora de TV veste mulheres negras com o manto escravocrata, chama menina branca racista de vítima e trata o único personagem sensato e plácido dessa narrativa, um jogador de futebol negro, como culpado.
Nenhuma dessas cenas está em Branco Sai, Preto Fica, novo filme de Adirley Queirós. Todas estão.
O comentário é de Carol Almeida, jornalista, especializada em cinema e mídia ativista, em artigo publicado pelo sítio Brasil Post, 21-09-2014.
As camadas mais profundas de nosso inconsciente saliente nacional são aqui abertas com um corte transversal a revelar o que herdamos, e vamos deixar de herança, dessa terra em transe. O de cima sobe e o de baixo desce, diria o antropólogo Francisco de Assis França. Adirley entende bem o axioma e faz com ele um longa-metragem com uma consciência extraordinária, ora em grave, ora em agudo, desse presente mal-estar social. A partir de um evento real ocorrido nos anos 80, no baile de black music conhecido como Quarentão, então ponto cultural mais agitado da Ceilândia, Distrito Federal, o filme constrói uma fábula, ou se preferirem, uma ficção científica documental, que acompanha e cruza dois personagens diretamente afetados por uma batida policial dentro desse baile. Suas histórias apontam com precisão para uma reflexão sobre o direito à ocupação dos espaços nas cidades enquanto um direito humano negado diariamente em estádios de futebol, emissoras de TV, elevadores de serviço.
O filme usa esse tempo presente do ponto de vista de um indivíduo que aqui chegou do futuro, numa leitura bem-humorada e propositalmente tosca do que vamos nos tornar em breve – a pontuar que do tempo em que ele vem, o Brasil passou a ser comandando por uma “vanguarda cristã”. Dimas Cravalança é o agente enviado para coletar provas sobre o episódio que deixou um homem paraplégico e o outro sem uma perna. É preciso indenizar essas pessoas. A partir de fotos do Quarentão, Dimas e nós tentamos criar os pontos de conexão entre as duas figuras centrais no filme. Muito rapidamente, ele, vestido com uma camisa da seleção da Nigéria (Adidas, Fifa) e enviado numa máquina do tempo com cara de caixa de depósito, verá que Marquim e Shokito são duas resistências a esse mundo de “227 prestações e grafite paga pau de capitalismo”.
Novamente, assim como fez em A Cidade É uma Só?, o cineasta ceilandense brinca com os limites da ficção e da realidade, dos atores e dos depoentes. E aqui vai além, usando de elementos concretos da vida de seus protagonistas como marcas simbólicas da tenacidade com que eles enfrentam o mundo. O longo tempo que se arrasta no elevador que sobe e desce Marquim em sua cadeira de rodas, a prótese da perna sendo pacientemente retirada por Shokito antes dele dormir, a agulha tocando no vinil. Tudo exige tempo e uma certa serenidade. A revolução social virá na paz das ideias. E no tópico desse tempo necessário na montagem do filme, importante pontuar que o desenho de som e a brilhante mixagem dá um peso enorme a essa ideia de que a ferrugem do mundo está nas máquinas (e, portanto, no sistema) e não nas pessoas.
As escolhas de Adirley não podiam ser mais calculadamente sintomáticas. Seus protagonistas são dois caras que nos anos 80 se socializavam a partir da dança, expressão política de ocupação dos corpos no espaço, e afirmavam sua identidade a partir dela. Quando depois de uma batida policial, essas duas pessoas perdem, de modos distintos, suas pernas, entende-se que a mobilidade que eles tinham era também uma ameaça ao status quo. Mas em lugar de ceder à inércia da resignação, ambos resignificaram suas perdas e agora, num apartheid institucionalizado do filme (é preciso passaporte para sair de Ceilândia e entrar em Brasília), eles vão mandar um recado ao mundo com uma bomba. E essa bomba vai literalmente carregar todas as expressões culturais marginalizadas pela segregação social. Contra o negro, pobre, nordestino e todas as diferenças.
O cinema de Adirley Queirós, assim como boa parte do que vem sendo produzido em Pernambuco, é atávico ao debate que surge nas periferias políticas do país. Como diria um personagem do documentário paulistano Família Braz – Dois Tempos, na periferia você consegue enxergar e discutir o centro, enquanto o centro só olha para si próprio. De modo que é melhor permanecer nesse lugar onde sua visão de mundo é não somente panorâmica, como crítica. As questões raciais, sexistas, xenófobas, homofóbicas, entre tantas outras, só podem partir daí, do atrito da exclusão. O centro, com a TFP e seus derivados, parece cada vez mais incapaz de enfrentar o outro. Branco Sai, Preto Fica é um filme de enfrentamento a essa ausência de diálogo.
Por trás de todas as ironias da vanguarda cristã, da máquina do tempo, do bangue-bangue do Distrito Federal e de uma “dança do jumento” como catalisadora de uma expressão genuína da periferia, o novo filme de Adirley é um rap preciso que rasga tudo no caminho. Vai ser, vai ser, vai ter de ser faca amolada.
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Um país que é caso de ficção científica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU