23 Janeiro 2015
"Com mais frequência do que a frase "com cheiro das ovelhas", a citação que mais ouço é "Quem sou eu para julgar?". Uau! Essa foi a sua resposta, você deve se lembrar, à pergunta de uma jornalista sobre os gays durante o seu retorno do Brasil. Tudo o que posso dizer é que eu vejo suas palavras consoantes com um homem que, por sua própria admissão, passou por uma profunda conversão depois de seu período como provincial e teve que admitir para si mesmo que precisava mudar seus métodos", escreve John O’Malley, professor do departamento de teologia da Georgetown University e autor de What Happened at Vatican II (O que aconteceu no Vaticano II), ao apresentar o seu novo livro The Jesuits: A History From Ignatius to the Present [Os jesuítas: uma história de Inácio até o presente] (Pennsylvania: Rowman & Littlefield Publishers, 2014).
John O’Malley participará do Colóquio Internacional IHU “O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade, promoviido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, apresentando a conferência de abertura do evento intitulada Concílio Vaticano II: Crise, Resolução, Conclusão, no dia 19 de maio de 2015, às 9 horas, na Unisinos, em São Leopoldo.
Eis o artigo.
Escrevo como um jesuíta. Quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito papa, todo mundo ficou surpreso, mas ninguém ficou mais surpreso do que nós. Nunca houve um papa jesuíta, e nós presumimos que nunca haveria algum. Embora tenhamos uma história de devoção às políticas papais, as nossas relações com papas individuais têm sido muitas vezes tensas – a tal ponto que, em 1773, o Papa Clemente XIV nos suprimiu. Além disso, agora e como sempre foi, os jesuítas são controversos dentro do catolicismo. Temos amigos ardorosos e inimigos tão ardentes quanto. Não poderia, portanto, haver um papa jesuíta – potencialmente divisivo demais!
Mas aconteceu. E então? Faz alguma diferença? Eu acho que faz. Sendo um jesuíta, considero-o um dos nossos em praticamente cada gesto que ele faz e em cada palavra que ele fala. Embora às vezes seja um pouco difícil de apontar o porquê disso, eu selecionei dez aspectos do seu comportamento como papa que me parecem, acima de tudo, jesuíticas.
1. Ele tem uma conversa franca. Eu sei que os jesuítas têm uma reputação de fala de duplo sentido (jesuítica!), mas essa não é a minha experiência depois de muitas décadas na Companhia de Jesus. Também não é a minha experiência como historiador da Ordem dos Jesuítas. As falas de Francisco são notavelmente livres do jargão eclesiástico e de uma agenda escondida. O que ele diz é o que ele quer dizer.
2. Quando ele exorta a Igreja a ir para as fronteiras e para a periferia, ele está simplesmente ecoando palavras de alguns dos mais recentes documentos jesuítas oficiais. É claro que os jesuítas não têm o monopólio dessa ideia, mas é preciso lembrar que os jesuítas foram fundados como uma ordem missionária. Embora a ordem logo tenha feito da educação o seu ministério primário, ela até hoje nunca perdeu o impulso de sair para além do conhecido e confortável – seja literalmente por viagens, seja metaforicamente através dos estudos acadêmicos.
3. A esse respeito, os jesuítas desde o início tiveram como objetivo ir ao encontro daqueles que mais precisam de ajuda. Na década de 1970, quando Pedro Arrupe, superior-geral dos jesuítas, fundou o Serviço Jesuíta aos Refugiados, ele forneceu uma atualização moderna para esse objetivo. Jorge Bergoglio foi superior dos jesuítas na Argentina na época e foi responsável por inspirar seus companheiros jesuítas nesse sentido. Sua visita como papa aos refugiados africanos em Lampedusa não foi um impulso casual.
4. Durante a sua visita a Lampedusa, quando ele clamou contra a "globalização da indiferença", ele colocou em ação o forte compromisso dos jesuítas para "a promoção da justiça" em sua importante reunião em Roma em 1974-1975. Bergoglio foi um dos cerca de 200 líderes jesuítas presentes na reunião. Esse compromisso, obviamente, teve um efeito profundo sobre ele, assim como em todos nós. Eu posso dizer isso porque estava lá também.
5. Quando ele se recusou a viver no Palácio Apostólico, novamente ele me pareceu "muito jesuíta". Muitas vezes, eu me maravilho, por exemplo, com a nossa Cúria [jesuíta] em Roma, a poucos metros da Cúria Romana. É completamente diferente de qualquer outra sede mundial que eu já conheci. Não há afetações de qualquer espécie e nenhum privilégio especial. Todos os membros da Cúria, dos titulares de cargos mais altos até os mais baixos, revezam-se servindo as mesas. Como provincial, padre Bergoglio passou muitas noites em nossa Cúria e fez muitas refeições no refeitório. Ele tinha um modelo.
6. O superior-geral dos jesuítas tem uma mesa, mas ele deixa ao acaso quem poderá decidir jantar com ele. Quando eu vi a foto do Papa Francisco, esperando a sua vez na fila do refeitório do Vaticano para os seus empregados, eu sabia onde ele tinha visto a ideia em prática dia após dia. E quando eu o vi na mesa com os trabalhadores, eu sabia de onde ele tinha aprendido os exemplos. Quando ele cumprimentou a multidão na Praça de São Pedro, na noite em que foi eleito, com o simples “Buona sera” (Boa noite), pareceu-me exatamente o que eu esperaria que um jesuíta fizesse.
7. Pouco depois de sua eleição, ele deu uma entrevista para os editores de revistas jesuítas de todo o mundo. Entre as muitas coisas que me impressionaram nessa entrevista, estava a amplitude cultural do papa. Todo mundo sabe que ele é um grande fã de futebol, mas, nesse artigo, ele revelou um profundo conhecimento de literatura, música e pintura. Em nossa formação como jesuítas, a ordem insiste que estudemos assuntos para além do currículo clerical padrão. A história dos jesuítas está cheia de exemplos de jesuítas astrônomos, cartógrafos, dramaturgos, pintores e escultores. Em um ponto na sua formação, Francisco teve que ensinar literatura e psicologia. Ele é, obviamente, uma pessoa profundamente religiosa, mas combina isso com a sofisticação mundana, que é uma tradição jesuíta.
8. Francisco fala diretamente, mas seu discurso, muitas vezes, tem um impacto poderoso, como quando disse aos sacerdotes que eles tinham que ter o "cheiro de suas ovelhas". Seus gestos também carregam um significado poderoso, como quando ele lavou os pés da jovem muçulmana, uma prisioneira condenada em uma prisão romana. Além de filosofia e teologia, nenhuma disciplina foi mais tradicionalmente cultivada pelos jesuítas de modo assíduo do que a retórica, não a "mera retórica", mas uma comunicação eficaz em palavras e ações. A esse respeito, Francisco é um mestre e o jesuíta ideal.
9. Ele me parece (e muitas outras pessoas também acham isso) uma pessoa eminentemente livre. Ele parece dizer e fazer o que faz simplesmente porque parece certo para ele. Ele é livre por dentro. É difícil para mim não atribuir essa liberdade, em grande parte, ao resultado de suas experiências durante seus retiros de acordo com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Digo isso porque o objetivo dos Exercícios é ajudar as pessoas a chegarem à liberdade de fazer a coisa certa, a única coisa que é necessária e, então, uma vez que chegamos lá, viver sempre livre por dentro.
10. Com mais frequência do que a frase "com cheiro das ovelhas", a citação que mais ouço é "Quem sou eu para julgar?". Uau! Essa foi a sua resposta, você deve se lembrar, à pergunta de uma jornalista sobre os gays durante o seu retorno do Brasil. Tudo o que posso dizer é que eu vejo suas palavras consoantes com um homem que, por sua própria admissão, passou por uma profunda conversão depois de seu período como provincial e teve que admitir para si mesmo que precisava mudar seus métodos. Eu novamente vejo os Exercícios Espirituais como cruciais para compreendê-lo a esse respeito. Os Exercícios tentam levar à conversão não apenas como um evento único e final, mas como um processo em curso onde continuamos a enfrentar as próprias deficiências. O processo deve resultar na humildade traída por "Quem sou eu para julgar?".
Tanto ele quanto eu estávamos presentes naquele grande encontro que mencionei anteriormente, a 32ª Congregação Geral dos Jesuítas, a mais alta autoridade da ordem. O primeiro decreto substantivo dessa reunião começou com as palavras: "O que é ser um jesuíta? É reconhecer-se um pecador". O Papa Francisco votou pela aprovação desse decreto. Todas as evidências apontam para o fato de ele ter levado isso a sério. É, na minha opinião, o fundamento inabalável de sua abordagem para todas as coisas.
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Papa Francisco. Jesuíta. E então? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU