17 Dezembro 2014
Uma investigação inédita e altamente polêmica sobre cada uma das comunidades católicas femininas nos EUA que começou a partir da crítica de que estas irmãs estariam tendo uma “mentalidade secular” terminou, nesta terça-feira, com um relatório repleto de elogios, e sem nenhuma medida disciplinar ou mecanismos de controle.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 16-12-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Este resultado provavelmente será visto como um importante pedido de reconciliação do Vaticano para as irmãs americanas, bem como um sinal de uma abordagem mais conciliatória sob o comando do Papa Francisco.
“Desde os primeiros dias da Igreja Católica [nos Estados Unidos], as religiosas estiveram corajosamente na vanguarda (...) desinteressadamente atendendo às necessidades espirituais, morais, pedagógicas e físicas de inúmeras pessoas”, diz o texto.
Em particular, o relatório afirma que estas irmãs estão especialmente prontas para “entrar em ressonância com a insistência do Papa Francisco de que ‘nenhum de nós pode pensar que estamos isentos da preocupação pelos pobres e pela justiça social’”.
O documento expressa a “profunda gratidão da Sé Apostólica e da Igreja nos EUA pelo serviço dedicado e desinteressado das religiosas em todas a áreas essenciais da vida da Igreja e da sociedade”.
A Irmã Sharon Holland, presidente de um grupo de religiosas que também enfrenta uma investigação por parte do Vaticano, disse nesta terça-feira que, apesar de alguma “apreensão” entre as irmãs, o novo relatório é “afirmativo e realista” e elogiou o seu “tom encorajador”.
“Na medida em que as irmãs lerem, estudarem, rezarem e discutirem a partir deste relatório, acredito que elas se sentirão afirmadas e fortalecidas”, declarou.
Com efeito, o documento apresenta um fim destacadamente pacífico a um processo gestado em meio a uma turbulência e impressões de uma repressão por parte da estrutura masculina de poder da Igreja.
Em 2009, a mais alta autoridade vaticana para as ordens religiosas, ao comentar sobre a lógica por detrás da investigação, queixou-se de “uma certa mentalidade secularista que se espalhara entre estas ordens religiosas, talvez até mesmo um certo espírito ‘feminista’”. Esta linguagem alimentou expectativas de haver alguns movimentos desagradáveis de Roma no intuito de pôr as religiosas nos eixos.
Mas, em vez disso, o processo desenrolou-se naquilo que um experiente vaticanista descreveu como praticamente um “festival de amor”.
O documento de 5200 palavras divulgado nesta terça-feira (16 de dezembro) marca o fim de uma investigação – chamada de “Visitação Apostólica” – iniciada em 2008 pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, organismo informalmente conhecido como a “Congregação para os Religiosos”.
Este relatório, no entanto, não tem influência alguma sobre uma outra investigação em curso relativa à Conferência de Liderança das Religiosas (ou Leadership Conference of Women Religious – LCWR), iniciada em 2009 pela Congregação para a Doutrina da Fé, que levou à formação de uma comissão de três bispos americanos para supervisionar uma reforma nos estatutos da organização. A LCWR, liderada pela Irmã Holland, é a principal associação que reúne as líderes das ordens religiosas femininas nos Estados Unidos.
Supreendentemente, termos tais como “crise”, “dissidência”, “doutrina” e “hierarquia” não aparecem no novo documento vaticano. Ainda que o termo “obediência” esteja presente, ele é mencionado no contexto de obediência a Jesus Cristo, e não de obediência à estrutura de poder da Igreja.
O relatório admite que “a Visitação Apostólica foi recebida por apreensão e suspeita por algumas religiosas”.
“Fazemos uso desta oportunidade aqui para convidar todos os institutos religiosos a aceitar a nossa vontade de travar um diálogo respeitoso e frutífero com eles”, lê-se.
Embora alguns críticos tenham pedido ao Vaticano que se impusesse um controle mais rígido sobre as ordens religiosas femininas no país, tais como exigir que suas Superioras pronunciassem votos de lealdade aos ensinamentos da Igreja – como, por exemplo, se pediu para as líderes da Caritas em 2012 –, não houve nenhuma medida no documento de terça-feira nesse sentido.
O relatório é assinado pelas duas mais altas autoridades do Vaticano para a vida religiosa e foi apresentado numa coletiva de imprensa, junto das irmãs americanas que conduziram a Visitação e de irmãs que lideram a LCWR.
Embora as visitações sejam uma rotina da vida religiosa, uma investigação envolvendo todas as congregações femininas de um país em particular não é nada comum.
Algumas ordens religiosas femininas anunciaram que não iriam cooperar plenamente com a investigação, e algumas vozes de destaque entre as religiosas no país lançaram a ideia de “não estar mais sob a lei canônica”, com o que queriam dizer: cortar os laços com a Igreja e se incorporar à lei civil.
No começo de 2011, no entanto, nomearam-se para presidir a Congregação para os Religiosos o cardeal brasileiro João Bráz de Aviz e Dom Joseph Tobin (arcebispo americano). Estes dois manifestavam um desejo de melhorar a relação de Roma com estas irmãs. (Tobin foi subsequentemente nomeado arcebispo de Indianápolis.)
Com efeito, o relatório divulgado nesta terça-feira representa uma abordagem mais suave sob o comando do cardeal brasileiro.
Em vez de repreender, o relatório diz que a visitação, que envolveu 341 comunidades femininas dos EUA, pretendeu fomentar o “diálogo respeitoso”.
A orientação geral das conclusões é elogiosa.
“Hoje, as irmãs colocam, de forma generosa e criativa, o seu carisma a serviço das necessidades da Igreja e do mundo”, diz a certa altura, referindo-se ao propósito original para qual uma ordem religiosa é fundada.
O documento está organizado em 12 seções e apresenta observações amplas sem ressaltar alguma irmã ou grupo de irmãs em específico.
Ele começa com uma breve visão geral do processo ocorrido por detrás da visitação. Em seguida, apresenta alguns dados empíricos sobre as religiosas no país. Segundo o relatório, a idade média das irmãs, hoje, está na faixa dos 70 anos, e o atual número de 50 mil membros representa um declínio dos 125 mil que havia em meado da década de 1960.
Em vez de considerar estes números atuais como um indicativo de crise, o relatório diz que “os números da década de 1960 representaram um fenômeno de curto prazo, não comum na experiência da vida religiosa do país ao longo de sua história”.
Outros assuntos presentes no relatório incluem vocações, oração, vida comunitária, autoridade, finanças, evangelização e comunhão com o resto da Igreja. Em cada um destes temas, o texto identifica pontos fortes e desafios, e faz breves recomendações.
Há um chamado indireto à ortodoxia doutrinal na Seção 6: “Chamado à Vida Centrada em Cristo”.
“Deve-se ter cautela não para deslocar Cristo do centro da criação e de nossa fé”, diz o texto.
Ao longo dos anos, alguns críticos se queixaram de que algumas irmãs de mentalidade progressista estejam flertando com uma ecoespiritualidade New Age, que fala mais sobre o cosmos do que de Jesus Cristo. Há um eco desta preocupação no relatório, que pede às irmãs para “reverem com cuidado as suas práticas espirituais e seu ministério para garantir que elas estejam em harmonia com o ensinamento católico sobre Deus, a criação, a Encarnação e a Redenção”.
Ao mesmo tempo, o relatório aplaude o desejo das religiosas de fortalecer os laços como resto da Igreja, incluindo os bispos.
“Muitas descreveram-se como membros integrais da Igreja e manifestaram o desejo de colaborar na manutenção e no fortalecimento dos laços da comunhão eclesial com os pastores da Igreja universal, nacional e local, com os leigos e com as demais congregações religiosas”, lê-se.
“Muitas delas [as religiosas] notaram a necessidade permanente de um diálogo honesto com os bispos e o clero como um meio de esclarecer o seu papel na Igreja e fortalecer o testemunho e a eficácia delas como mulheres fiéis ao ensinamento e à missão da Igreja”.
Sobre as finanças, o relatório observa que muitas das ordens femininas estão vivenciando uma “perda significativa e constante de renda”, em parte devido às crescentes exigências de cuidado para com irmãs mais velhas. O texto pede que as comunidades “administrem, com sabedoria, os seus recursos” e convida as irmãs a abraçarem um estilo de vida de “pobreza evangélica”.
O relatório de terça-feira também recorda o processo que se iniciou em 22 de dezembro de 2008, quando o cardeal esloveno Franc Rodé, na época a mais alta autoridade vaticana para a vida religiosa, publicou um decreto lançando uma “Visitação Apostólica” que cobriria todas as ordens religiosas dos EUA.
Rodé nomeou a Irmã Clare Millea, nascida em Connecticut a radicada em Roma. Millea é Superiora Geral da congregação internacional das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus. Ela organizou o processo em quatro fases, que se desdobraram entre 2009 e 2012:
• Fase 1: Solicitação de uma impressão geral a partir das superioras das comunidades religiosas femininas.
• Fase 2: A coleta de informações sobre as congregações, incluindo a totalidade de membros, a situação financeira, os ministérios, etc.
• Fase 3: A realização de visitas in loco a 90 ordens, representando a metade das 50 mil religiosas do país. Houve 78 religiosas e religiosos que trabalharam como visitadores.
• Fase 4: A submissão de um relatório geral ao Vaticano, mais relatórios individuais às ordens que receberam visita.
Millea submeteu o seu relatório final a Roma em janeiro de 2012, época em que o cardeal Bráz assumiu o comando da Congregação para os Religiosos. O relatório não foi divulgado em fevereiro de 2013, quando o Papa Bento XVI anunciou a sua renúncia. Ele foi sendo revisado desde a eleição do Papa Francisco.
O documento diz que relatórios individuais serão enviados às comunidades que foram visitadas bem como às comunidades cujas próprias propostas apresentaram áreas especiais de preocupação.
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Investigação vaticana termina com um pedido de reconciliação com irmãs americanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU