25 Novembro 2014
"O corrupto provavelmente teria pena de sua vítima se a visse, até porque ele não atira nem apunhala. Ele não mata com seus atos, mas com sua omissão. É omitindo comida, remédios e educação que ele chacina", escreve Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo, em artigo publicado pelo jornal Valor, 14-11-2014.
Eis o artigo.
Já escrevi aqui sobre a corrupção, porém não gosto de me repetir, nem de me limitar à indignação. Mas vale a pena, no curso das operações Lava-Jato e Juízo Final, firmar alguns pontos fundamentais.
Primeiro: "república" é coisa pública, bem comum. A conduta mais antirrepublicana que há é vulnerar, atacar, destruir o bem comum. Ou seja, nada é mais inimigo da república do que a corrupção, que privatiza ilegalmente o que pertence a todos. É um erro, que devemos à escola, pensar que o contrário da república é a monarquia. Distinguir repúblicas e monarquias é coisa do século XIX, quando estas últimas eram o que hoje chamamos de ditaduras.
Desde a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, quase todas as monarquias são constitucionais. As monarquias escandinavas visam mais o bem comum do que muitas "repúblicas" do resto do mundo. Devolvamos à República seu sentido forte: há república quando se visa o bem comum. Ser contra a república não é questão de opinião, de achar bonito um rei. É crime, é praticar atos desviando de sua finalidade o viver em comum.
Segundo: na América Latina nos acostumamos ao patrimonialismo, uma das versões ibéricas do que hoje chamamos corrupção. Consiste em o governante tratar a coisa pública como se fosse seu patrimônio privado. Toda confusão do público e do privado, quando favorece o detentor do poder político, vai dar em patrimonialismo. Por exemplo, se um governante usa os carros oficiais para transportar familiares (a não ser que haja razões claras, consensuadas, de segurança para tal). Nossos governadores e presidente, que moram em palácios e não gastam nem com a comida ou a roupa, dão exemplo disso. Mas este é só um detalhe.
Porque, terceiro: não é verdade que "somos todos corruptos". Não somos, não. Estou convencido de que a grande maioria é honesta. Não vamos desresponsabilizar os corruptos por sua corrupção dizendo que ela pertence à "cultura brasileira". Nossa sociedade pode ser um tanto leniente com isso, mas mesmo isso está mudando. Já comentei aqui a modelo que contou à "revista Trip" que usava sua beleza para não levar multas dos guardas. Falou isso num tom de flerte, mas mesmo assim os leitores caíram matando. Nossa leniência diminuiu muito, e isso é ótimo. Também temos mais informações sobre desvios de dinheiro, além de menos tolerância por isso.
Quarto, talvez mais importante: não é verdade que todos os atos de corrupção se equivalem. Sim, é errado agradar o policial ou o atendente, mas montar um "clube" para furtar centenas de milhões de dólares da Petrobras é coisa muito diferente. Não é apenas uma questão de tamanho. É uma diferença de concepção. Os pequenos erros morais de cada dia não estão na mesma lógica do assalto organizado aos cofres públicos. Precisamos desenvolver este ponto. Suponho que a lógica seja a inversa: não é porque vários corrompem policiais que uns pouquíssimos atacam o erário público. Talvez seja porque esses pouquíssimos roubam tanto que aqueles outros perdem a crença na honestidade, na decência. O que inspira uma cultura ampliada de desistência do bem comum é o mau exemplo dos poucos.
Mas, mais que isso, penso que um grande desafio à ética é: em que a roubalheira dos grandes se distingue dos pecadilhos dos pequenos? Eu mesmo, por enquanto, não tenho resposta completa, e lanço este desafio aos colegas que também trabalham com a ética. Mas penso que precisamos distinguir o furto do bem privado e o desvio do bem público. A ideia de que o corrupto é "ladrão", tão pertinaz em nossa sociedade, se inspira na sua comparação com quem furta indivíduos. Mas as vítimas do corrupto não são individuais, são a sociedade inteira. Daí que, talvez, seja mais correto pensar que eles não se limitam a furtar dinheiro (no caso, público), mas - acima de tudo - impeçam o bom uso desse dinheiro, por exemplo, em saúde, educação, outros serviços essenciais. Impedem que doentes sejam salvos, em hospitais que não deixaram existir ou funcionar. Impedem que crianças e adolescentes sejam educados, em escolas que devido a eles não existem ou não funcionam. Seu crime é contra a vida, que eles abreviam ou mutilam. Abreviada, a vida dos que morrem antes da hora. Mutilada, a dos que vivem mal. Por que não considerar assassinos os corruptos? Pelo menos, no nível simbólico.
Talvez por isso, faça sentido a reforma legal que, na esteira das manifestações de 2013, tornou hediondo o crime de corrupção. Voltarei a este tema no futuro, mas observo que o hediondo, propriamente dito, é uma pessoa ver o sofrimento de outra e ser indiferente a ele, ou até sentir prazer graças a ele. Isso é desumano. Isso é desumanidade. Mas isso só acontece em alguns crimes presenciais - geralmente, crimes cometidos por pobres. Ora, a corrupção é um crime não-presencial; mais que isso: indireto, abstrato. O corrupto não vê a sua frente as crianças desnutridas, as pessoas miseráveis porque privadas de educação, os mortos de doenças curáveis que são vítimas da corrupção. Por isso, a rigor, seu crime não é hediondo.
Mas ele mata mais, muito mais, que o pé de chinelo enlouquecido pela falta de oportunidades e sobra de drogas. O corrupto provavelmente teria pena de sua vítima se a visse, até porque ele não atira nem apunhala. Ele não mata com seus atos, mas com sua omissão. É omitindo comida, remédios e educação que ele chacina. Mas não será um sinal de nosso desenvolvimento moral começarmos a chamar de hediondo também esse tipo de atitude, em que a pessoa pode até ser caridosa no micro, mas - no macro - destrói a república e mata ou mutila vidas?
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A corrupção assassina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU