22 Outubro 2014
A gente se entusiasmou demasiado cedo na metade do percurso do Sínodo vaticano sobre a família. No final, os conservadores foram vencidos. Mas, o Papa Francisco ainda não disse a última palavra. Ele ainda tem dois anos para impor uma mudança de linha sobre os homossexuais e sobre os divorciados redesposados.
O comentário é de Henri Tincq, jornalista francês, que por longos anos era o responsável pela cobertura dos assuntos do Vaticano no jornal Le Monde, em artigo publicado no sítio francês Slate, 20-10-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Aqueles que pensavam na “grande noitada” da Igreja católica sobre os problemas do divórcio e da homossexualidade voltarão decepcionados. Na imprensa e nos ambientes progressistas as pessoas se entusiasmaram demasiado cedo com a leitura do relatório intermediário deste sínodo dos bispos sobre a família que tanto deu a falar no Vaticano e que retomará os trabalhos daqui a um ano. Sobre os temas sensíveis sobre o matrimônio e o sexo a Igreja está a tanto tempo em ruptura com a sociedade moderna que era muito imprudente crer numa mudança de rota ditada pelas recentes evoluções de costume ou pelos “Diktats” de uma opinião pública progressista. A Igreja não é deste mundo...
Aparentemente, os conservadores tiveram, no final, vencida a partida. No sábado, 18 de outubro, o voto do relatório que concluía a primeira fase do Sínodo (unicamente consultivo), escalonado sobre dois anos, corrige a primeira impressão de vitória “liberal”. Os dois pontos mais controversos esperando o acesso à mesa da comunhão negada aos divorciados redesposados e a organização de uma melhor acolhida para os homossexuais foram rejeitados. Ou antes, não obtiveram, da parte dos votantes, a imponente maioria dos dois terços, que era requerida.
O voto concluía duas semanas de debate apaixonado entre peritos, bispos, representantes de casais, um momento muito raro na cúpula da Igreja. Defensores e adversários de uma evolução da doutrina católica sobre a família se defrontaram. O Papa Francisco, que havia esperado por fortes mudanças e liberado a palavra, foi ouvido. Alguns protagonistas deste Sínodo até fizeram o confronto com a tomada de poder que se atuara em 1962, no início do Concílio Vaticano II, quando bispos audazes e corajosos (alemães, franceses, holandeses) haviam ousado, com grande surpresa de todos, subverter a ordem do dia imposta por uma Cúria romana onipotente que queria acima de tudo que não mudasse nada!
Tinha sido dado o início a uma profunda reforma da Igreja, cuja elaboração durou três anos. Mudar a prática sem a doutrina. Encontramo-nos hoje numa situação idêntica? Também se os conservadores venceram o primeiro lance, uma dinâmica reformadora foi aviada. Foram avançadas idéias novas, em vista de uma maior tolerância com os divorciados redesposados e com os homossexuais, e sobre estes, não obstante as numerosas freadas, a Igreja não poderá mais voltar para trás.
O Papa Francisco que, em 2016, terá a última palavra, não faz em todo caso segredo de suas preferências. Não se pode saber a priori o que ele estabelecerá pessoalmente no texto final que será o decisivo, mas ninguém ignora atualmente a extrema habilidade do Papa jesuíta de introduzir a mudança na prática pastoral da Igreja, sem mudar numa só vírgula a sacrossanta doutrina. Desde o anúncio oficial de seu programa, aos 23 de novembro de 2013, (na exortação sobre a Evangelli Gaudium), fazia este ato de fé: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído pelas estradas, antes que uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de agarrar-se às próprias seguranças". Em outras palavras: Lá onde o Papa Bento XVI fazia “caridade”, uma consequência da “verdade” doutrinal, Francisco parte da caridade para conduzir à verdade. E, concluindo no sábado a primeira fase do Sínodo, este Papa pragmático colocava no mesmo plano as duas “tentações” que lhe pareciam igualmente condenáveis: a tentação “tradicionalista” do “enrijecimento hostil”. E a tentação “progressista e liberalista da “misericórdia enganadora”, aquela que “faça as feridas sem antes curá-las e medicá-las”.
Agrade ou não aos conservadores, tudo o que se conduziu em frente neste Sínodo sobre a família vai no sentido da mudança. O Papa jesuíta não ignora que a posição da Igreja sobre os divorciados redesposados e sobre a acolhida dos homossexuais se tornou insustentável, incompatível com sua preocupação pelas “periferias”, pela compreensão daqueles que deixaram a Igreja ou a encontram demasiado desdenhosa a propósito dos homossexuais: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor com boa vontade, quem sou eu para julgá-la?“ Jamais se ouvira semelhante afirmação na boca de um Papa. No mesmo dia, na mesma conferência de imprensa, citava o exemplo das Igrejas ortodoxas que permitem uma “segunda possibilidade” de matrimônio para os fiéis divorciados e que os admitem à comunhão.
A habilidade tática do Papa jesuíta
No próprio procedimento do Sínodo, o Papa jogou suas cartas para curvar os conservadores. No lugar chave de secretário geral nomeou uma personalidade muito próxima a ele, o italiano Lorenzo Baldisseri, logo nomeado cardeal, embora privado de qualquer experiência em matéria de família. E, como secretário especial, colocou o teólogo italiano Bruno Forte, conhecido como pessoa da linha reformadora do cardeal jesuíta Carlo Maria Martini (ex arcebispo de Milão, falecido em 2012), de quem Paulo VI e Bento XVI desconfiavam: uma linha teológica e pastoral aberta à mudança da linha católica em âmbito sexual. É o Papa Francisco que decidiu pessoalmente o envio de um questionário a toda parte no mundo, nele incluindo os temas mais controversos dos divorciados redesposados e das uniões homossexuais.
E é por causa desse questionário – cujas respostas foram publicadas, intencionalmente, por alguns episcopados – que a opinião pública católica começou a pensar que aqueles temas, considerados há muito tempo como tabu, se tornavam “abertos” e que podiam finalmente ser debatidos. Aquele questionário foi sentido pelos católicos como uma libertação e uma autorização. Nesta via, foram feitas iniciativas “selvagens”. A diocese de Friburgo na Brisgóvia, dirigida por Robert Zollitsch – presidente da Conferência episcopal alemã – publicou um texto visando reconhecer o acesso à comunhão dos divorciados redesposados sob “simples decisão de consciência”.
O Vaticano reagiu vivazmente através da voz autorizada do cardeal Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a doutrina da fé, mas sua advertência não teve nenhum efeito. Ao contrário, dois membros do conselho do G8 (os oito cardeais mais próximos do Papa), o alemão Reinhard Marx e o hondurenho Oscar Rodriguez Maradiaga, se levantaram contra a “pretensão” do guardião da fé de truncar antecipadamente a discussão. O Papa não interveio para defender o seu prefeito.
Foi ainda o Papa Francisco que moveu as suas peças, encarregando Walter Kasper, outra personalidade alemã da Cúria, a dar início ao debate, em março passado, no seio do colégio dos cardeais, sobre a proibição da comunhão para os divorciados redesposados. Aquele cardeal é um forte defensor de uma evolução da disciplina da Igreja, mas jamais foi escutado por João Paulo II e por Bento XVI. Com o favor excepcional do Papa Francisco, foi autorizado a tornar pública a sua intervenção, violentamente acolhida por alguns dos seus colegas conservadores. Publicado no cotidiano Il Foglio e pela Casa editora Queriniana, teve um eco imenso. Para contrabalançar o impacto, a Congregação para a Doutrina da Fé (sempre ela), começou a redigir um texto contrário, mas se chocou com o veto do Papa.
Sair do “ou tudo ou nada”
Assim, tinha sido dado o tom a este Sínodo de outubro, precedido por polêmicas e que foi, com efeito, muito rico de disputas, mas o apelo do cardeal Kasper a uma “mudança de paradigma” parece ter sido escutado. A idéia forte que disso resulta é que é preciso sair do “ou tudo ou nada” do discurso da Igreja, sem mudar doutrina, e arriscar “escolhas corajosas”, partir da realidade das fragilidades familiares, reconhecer que, com muita freqüência, foram “sofridas”.
A possibilidade de abrir os sacramentos aos divorciados redesposados no termo de “um caminho penitencial” – como sugerem os defensores de uma reforma - é seriamente estudada pela primeira vez na cúpula da hierarquia católica, mas não é, porém, o caso de renunciar à doutrina da indissolubilidade do matrimônio. Da mesma forma, uma clara mudança de linha se refere “às pessoas homossexuais que tem dotes e qualidades a oferecer à comunidade cristã”, mas a posição da Igreja sobre o fato que “as uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser assimiladas ao matrimônio entre um homem e uma mulher” é confirmada.
Jamais a instituição católica, num tão alto nível, havia reconhecido tão claramente estas mudanças. Não parte mais da verdade e da doutrina para andar em direção ao povo. Parte do povo, onde quer que se encontre, para acompanhá-lo em direção à doutrina. Mas, esta conduta de bom senso não é aceita unanimemente. Alguns bispos membros do Sínodo convidaram a banir certas expressões abusivas como “viver no pecado”... Mas, muitos deploraram a quase ausência, nos debates, da noção de “pecado” e recordaram que “Cristo condenou fortemente o perigo de ceder à mentalidade do mundo”. A Igreja ainda tem dois anos para debater, mas a inversão de perspectiva, iniciada pelo Papa Francisco, parece irreversível.