20 Outubro 2014
"Onde o processo sinodal final vai acabar é difícil dizer. Mas, enquanto isso, estamos passando por algo não experimentado desde o Concílio Vaticano II, uma Igreja disposta a debater temas uma vez considerados totalmente resolvidos, sem medo ou favorecimento. Isso em si é notável e uma lembrança da grande pluriformidade de opiniões presentes no seio da Igreja em todos os níveis."
A opinião é de Neil Ormerod, professor de teologia na Universidade Católica Australiana e frequente colaborador de revistas teológicas internacionais. O artigo foi publicado no sítio Eureka Street, publicação dos jesuítas da Austrállia, 19-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o texto.
Não é comum para os católicos ver os processos de tomada de decisão da Igreja serem feitos de forma transparente. Os recentes relatos do Sínodo sobre a família tem sido uma verdadeira revelação para aqueles acostumados a serem apresentados com um fait accompli eclesial, com todo o debate e a discussão a portas fechadas. Os tópicos em que a Igreja colocou uma face relativamente uniforme, pelo menos a nível oficial, agora revela um grau de pluriformidade não visto desde os tempos do Concílio Vaticano II.
Teria sido simplesmente inimaginável para um bispo ou cardeal dizer algo como o seguinte durante os pontificados de São João Paulo II ou Bento XVI:
Sem negar os problemas morais relacionados às uniões homossexuais é preciso notar que há casos em que a ajuda mútua, a ponto de sacrifício, constitui um apoio precioso na vida dos parceiros.
No entanto, isso foi publicado no site do Vaticano como parte do relatório interino do Sínodo.
A reação dos indivíduos mais conservadores foi rápida. O cardeal Burke estava tão indignado que ele criticou publicamente o documento.
Em relação aos homossexuais, observou, "Em primeiro lugar, não nos referimos às pessoas por sua atração por outras do mesmo sexo, chamando as pessoas de homossexuais. Isso não representa a sua identidade. "E sobre a questão das uniões homossexuais, continuou ele, "é impossível para a Igreja dizer que as relações homossexuais tem um aspecto positivo. Como podemos atribuir um aspecto positivo a um ato impuro? Isso tem que ficar claro".
Ironicamente, ele definiu essas relações em termos de "um ato impuro" enquanto que o documento do Sínodo pareça deixar em aberto a possibilidade de que tais atos não definem a "identidade" da relação, ela pode, por outros motivos, ter aspectos positivos, como "ajuda mútua, a ponto de sacrifício".
Ainda assim essa é apenas uma das frentes que o documento provisório do Sínodo abriu para discussão. Coabitação antes do casamento, contracepção, bem como a possibilidade de comunhão para os divorciados novamente casados também foram colocados em cima da mesa para o debate. Esse é um longo caminho desde os anos em que tal aberto debate era ativamente desencorajado e silenciado. E isso não vem de alguns teólogos "liberais" ou "leigos mal-informados" que devem saber seu lugar, mas a partir de bispos e cardeais, encorajados pelo Papa Francisco a falar livremente.
Além disso, cada um desses bispos e cardeais foi nomeado por João Paulo II ou Bento XVI. Esses são homens escolhidos por sua fidelidade à Igreja e aos seus ensinamentos, cuja nomeação foi sujeita a um controle significativo da parte do Vaticano. Se alguma coisa isso mostra é que a tentativa de manter uma tampa sobre debates relacionados a temas sensíveis não impede as pessoas de pensar e, dada a oportunidade, esses homens falaram o que pensam, sem ler de um script preparado.
É claro que o que muitos desses bispos estão dizendo reflete atitudes já presentes dentro da Igreja. Aqueles envolvidos em programas católicos de preparação pré-matrimonial relatam que a maioria dos casais que vem a se casar na Igreja já estão vivendo juntos, e podem muito bem ter filhos. O uso de contraceptivos pelos católicos espelha o da população em geral, enquanto atitudes em relação ao divórcio e a um novo casamento mudaram já que tantas famílias experimentam a realidade do divórcio com algum de seus familiares. Os bispos em contato com os seus rebanhos sabem dessas mudanças e estão à procura de um caminho a seguir para resolver as tensões que elas criam.
Alguns podem apontar para o sensus fidei, a noção primeiramente explicada por John Henry Newman e que teve a sua expressão formal no Concílio Vaticano II, defendendo uma mudança na doutrina da Igreja sobre todos os assuntos em discussão. Ainda assim, o sensus fidei é um conceito escorregadio e seria ingênuo para que seja reduzido a uma pesquisa de opinião. Mesmo na Igreja há uma tensão entre o empírico e o normativo.
Por outro lado, há outras mudanças que a Igreja é capaz de fazer. É comum para os conservadores dizerem que o Vaticano II não mudou quaisquer doutrinas da Igreja, como que a dizer, portanto, nada mudou. Mas a identidade da Igreja é mais do que suas doutrinas. Sem mudar suas doutrinas, a Igreja mudou radicalmente a sua atitude em relação às Igrejas não católicas, em relação a outras religiões e ao mundo em geral. Essas mudanças alteraram a identidade da Igreja sem alterar suas doutrinas, mas por transformar os relacionamentos.
E assim, sem alterar suas doutrinas, ela simplesmente parou de chamar os cristãos não católicos de cismáticos e hereges e os não cristãos de pagãos e infiéis. Tal linguagem encontramos agora ofensiva, uma memória distante de tempos passados. Da mesma forma, alguns dos participantes sinodais pediram uma cessação da linguagem agora em uso, tais como "intrinsecamente desordenados" ou "vivendo em pecado".
Sem dúvida, haverá uma pressão para o retrocesso, como evidenciado pela intervenção do cardeal Burke e outros prelados. Onde o processo sinodal final vai acabar é difícil dizer. Mas, enquanto isso, estamos passando por algo não experimentado desde o Concílio Vaticano II, uma Igreja disposta a debater temas uma vez considerados totalmente resolvidos, sem medo ou favorecimento. Isso em si é notável e uma lembrança da grande pluriformidade de opiniões presentes no seio da Igreja em todos os níveis. E, claro, nada disso teria sido possível sem a determinação e abertura do Papa Francisco!
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Igreja Católica volta à pluriformidade do Concílio Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU