25 Setembro 2014
Infelizmente as eleições privilegiam o enfoque maniqueísta da política. A identificação inibe o debate, as bandeiras sobrepujam o pensamento e o fanatismo transforma-se em autoritarismo das certezas prontas, dos dogmas intocáveis, sem falar na agressividade das intervenções contra quem tem uma visão distinta da sua. Tenho observado excelentes teóricos que hoje em dia percebo somente como isso: excelentes teóricos, sem capacidade de se posicionar com a mínima racionalidade a fim de traduzir as lutas políticas e disputa de projetos em uma pauta a ser tensionada na esfera pública. Ao contrário, agem como torcedores de futebol, dispostos a defender seu time a qualquer custo e colocar a culpa no árbitro se a equipe falhar. As eleições estão sendo para mim um espetáculo de idiotização para muitos, incapazes de ouvir e levar a sério outras vozes que não seu próprio eco.
O comentário é de Moysés Pinto Neto, graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra Canoas e da Univates, publicado em seu blog O Ingovernável, 24-09-2014.
Uma das alegações mais recorrentes usadas contra Marina Silva, por exemplo, é de que teria contradições. Ora, a menos que um partido possa ter o direito ao monopólio das contradições, elas estão aí para todos. Diz-se que Marina tem ajuda dos bancos e que seria a candidata “tucana disfarçada” por causa disso. Lembro que uma das acusações mais costumeiras contra Lula era a de ser um neoliberal disfarçado, e que a relação do PT hoje em dia com empreiteiras, agronegócio e mesmo com os bancos está longe de ser transparente. No âmbito da política majoritária e em um país conservador como o Brasil, não há como escapar de contradições. As candidaturas que se orgulham de pureza mal conseguem atingir 1% dos votos, o que considero ser um problema grave para uma perspectiva que pretende justamente representar a população que é maioria, ou seja, os pobres. A pureza pode ser também o apaixonar-se pelas próprias ideias, como disse certa vez Rodrigo Nunes em outros termos e outro contexto, sem capacidade de ligar-se a demandas práticas e reduzindo-se a um nicho específico que só dialoga consigo mesmo.
É claro que há limites para as contradições. Cada um tem os seus. Eu, por exemplo, não voto em candidata que apoia Kátia Abreu nem Geraldo Alckmin. Purismo? Talvez. Mas a política reduzida à pura estratégia também me parece ruim. Pretender, no entanto, ser totalmente alheio às maiorias não me parece interessante. Precisamos superar essa concepção dialética da contradição que pensa a realidade como plana, unidimensional. A coerência plena também tem um quê de totalização, o que em nada combina com a multiplicidade que aprendemos a cultivar no pensamento depois do ocaso das totalidades.
Por isso, proponho uma compreensão estratificada da política: significaria pensar que a política tem camadas de sentido, que também são camadas de força, a partir das quais se delimitam as relações de conflito e consenso. As propostas em nível de movimentos sociais, por exemplo, podem e devem ser muito mais radicais que no campo da política majoritária. Essas camadas não são estáticas. Ao contrário, são porosas, permeáveis e movediças.
Um anarquista como eu, por exemplo, sonha com a pressão constante das camadas da sociedade libertária contra o Estado até o ponto em que este seria reduzido à indiferença, numa tendência talvez inversa ao estadocentrismo que vivenciamos. Mas reconheço que são níveis de discurso distintos, são campos de sentido que não são fechados, mas diferentes.
Se o nível da contradição não nos permite ir muito adiante em julgar, por exemplo, as duas candidaturas que atualmente estão na liderança, proponho uma comparação diferente. Em vez dessa concepção dialética destrutiva, sugiro uma compreensão perspectivista. Qual é o projeto positivo de cada uma das candidaturas e como avaliar?
O projeto de Dilma Rousseff é o crescimento econômico e social brasileiro. Ela é formada na matriz do pensamento econômico-social tradicional brasileiro, nos projetos que foram implementados em parte pelo nacional-desenvolvimentismo sem a contraparte da distribuição de renda. Dilma pretende aprofundar as políticas sociais que deram certo – ProUni, Bolsa-Família, Minha Casa Minha Vida (concesso non dato), Vale Cultura e outras – e a melhoria da renda da classe trabalhadora. Sua aposta é que o Brasil precisa aumentar seu ritmo de produção industrial, gerando emprego, renda e possibilitando a inclusão de todos na roda do desenvolvimento. Dilma vê no Pré-Sal a chance de promover a redistribuição dos recursos da educação e da saúde, planejando a extração dos recursos naturais brasileiros a fim de financiar as iniciativas. Tem planos de aceleração do crescimento com a construção de estradas e extensão da matriz energética com hidrelétricas. Percebe o agronegócio como oportunidade para melhorar os índices de produtividade e a balança comercial brasileira. Quer desburocratizar as relações econômicas a fim de que possa promover essa aceleração. Flexibiliza padrões da ortodoxia neoliberal a fim de que possa manter o crescimento, ou pelo menos evitar sua interrupção, aumentando os empréstimos de capital via bancos públicos mesmo que isso seja direcionado a grandes empreiteiras, já que elas ajudam a aquecer o mercado interno. Coloca as querelas políticas em segundo plano em relação a essas metas, porque considera que a melhoria inclusiva na vida dos trabalhadores está acima de pautas radicais, preservando por isso a aliança com o PMDB como garantia da governabilidade nos seus termos. Na política externa, Dilma representa a possibilidade – com o PT – de uma aliança Sul-Sul que fortaleça economicamente esse lado do hemisfério contra o todo-poderoso Norte. Não necessariamente isso significa vantagem direta para o Brasil, salvo a de constituir um eixo político. Trata-se de um projeto, portanto, desenvolvimentista e aceleracionista, visando ao crescimento econômico e social brasileiro e a construção de um país mais socialmente justo.
Marina vem de outra matriz. Suas ideias estão forjadas no pensamento ecológico e no pluralismo social. Ela é mais “pós-moderna” que Dilma (pessoal vai adorar bater nessa, mas está valendo). Marina é mais Edgar Morin que Celso Furtado, mais Caetano que Schwarz, mais tropicália que Cebrap. Sua visão é da complexidade, da necessidade de construção de uma nova matriz político-econômica que dê conta de problemas novos surgidos no século XXI. Ela expressa isso pela ideia de sustentabilidade. E diz que essa noção é multidimensional: ecológica, ética, estética, social, econômica e política. É mais ortodoxa na economia porque não vê no crescimento ou industrialismo o ponto central para o Brasil. Prefere a estabilidade conquistada por FHC que as apostas desenvolvimentistas de Dilma.
Nas políticas sociais, como ela já reconheceu tantas vezes, percebe o PT como expert e por isso inclusive já sugeriu que o partido poderia se manter nesse setor no seu governo. Pretende, no entanto, mexer em pontos nevrálgicos do desenvolvimentismo que são a relação com a biodiversidade e a utilização desenfreada de combustíveis fósseis (que geram o aquecimento global). Também tem um visão diferente do desenvolvimento urbano, entendendo a cidade como ecossistema que precisa respirar de outra forma, desafogando-se dos automóveis e articular de outra forma a paisagem que não apenas pela relação emprego-renda.
Dá um lugar mais importante para a cultura que o tradicional, valorizando a multiplicidade cultural e até natural. Por isso, os índios, que não por acaso não mencionei quando falei de Dilma, aparecem como protagonistas. No mapa de Dilma, eles existem como entrave. No de Marina, como sujeitos. Enquanto para Dilma o trabalhador é uma figura universal, Marina, meio “pós-modernamente”, meio pela sua ligação com sua origem, percebe o colorido da população brasileira e que nem todos precisam ser “incluídos” para termos um país melhor. Alguns precisam apenas ser protegidos.
Marina também valoriza a política e tem uma noção meio utópica de que poderá fazer uma aliança transpartidária para renovar a república, usando a transição (governo só de 4 anos) como argumento. Pode ficar sem governabilidade e sem projeto com isso. Na política externa, Marina pode ser mais conservadora na aliança Sul-Sul que o PT vem construindo, mas é também a possibilidade de uma liderança para colocar a agenda ambiental em destaque no mundo. Lembro que parte da boa imagem de Lula foi construída de fora para dentro. Com Marina, pode ocorrer o mesmo. O projeto de Marina, portanto, é um projeto de sustentabilidade, com os limites que a palavra carrega para quem sabe as aporias do tema.
São dois projetos distintos e que merecem ser discutidos com seriedade. O jogo raivoso que vem sendo construído não colabora em nada para que a discussão seja introduzida no Brasil. Chamar Marina de tucana é a mesma coisa que chamar Dilma de peemedebista, ou seja, sabemos que apenas parte da verdade. Vale a pena deslocarmos um pouco a discussão do totalitarismo da ideia de contradição para os projetos positivos, a fim de decidir o voto de modo menos apaixonado e no limite idiotizado.
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As contradições estão aí para todos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU