09 Setembro 2014
No mês passado, uma série aparentemente discreta de reportagens sobre o Papa Francisco preencheu as colunas de notícias internacionais, atraindo pouca atenção da mídia americana, no entanto. Estas reportagens registravam o desejo do pontífice de acelerar a caminhada de um falecido bispo em direção à santidade em harmonia com os costumes da instituição.
A reportagem é de Emanuel Stoakes, publicado pelo jornal Salon, 05-09-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O religioso em questão era Oscar Romero, sacerdote que, antes de seu assassinato em 1980 pelo esquadrão da morte local, ocupava uma das posições mais altas da Igreja Católica em El Salvador. Tal como alguns dos textos mencionaram, Romero foi morto não muito depois de ter escrito ao presidente americano Jimmy Carter, pedindo a este que detivesse o apoio às forças repressoras do governo que estavam despedaçando o país com ataques contra os movimentos de massa que se opunham ao governo antidemocrático então vigente. Carter nunca respondeu; Romero foi morto em massa.
Naquela altura, El Salvador estava nos primeiros estágios de uma guerra civil que iria continuar a causar uma miséria sem igual no pequeno país centro-americano e a tirar dezenas de milhares de vidas. À medida que a violência se alastrava durante a década de 1980, Washington aumentava o nível de ajuda militar que mandava às autoridades governantes, sem dúvida os principais perpetradores dos inúmeros crimes de guerra que ocorreram naqueles anos, e colocava a sua generosa assistência à disposição do uso eficiente para assassinar civis indefesos em todo o país.
O governo americano sob o comando de Ronald Reagan deu continuidade, treinando, financiando e armando as mesmas forças governamentais, ignorando relatórios precisos sobre os massacres que vinham sendo feitos, além de desencorajar as tentativas de se chegar a um acordo negociado entre as partes em conflito.
Tendo ajudado a prolongar o conflito e tendo armado a parte mais abusadora, um relatório encomendado pelo então orador da Câmara acabou antecipando um acordo junto às Nações Unidas que ajudou a terminar com as lutas civis no começo da década de 1990. Isso demonstrou que, caso tivesse havido vontade política para tanto, os EUA poderiam ter ajudado a acabar com o derramamento de sangue muito antes.
Durante a guerra houve uma cobertura modesta sobre as atrocidades que aconteceram, e houve relativamente pouca atenção dada no caminho que levava à Casa Branca. Uma das poucas vozes que expressaram um nível apropriado de crítica, durante e depois deste período, foi a de Noam Chomsky, quem não cedeu em seus esforços de tentar trazer a atenção para a questão.
Escrevi a ele, Chomsky, perguntando sobre estes eventos. Ele me forneceu uma longa resposta, da qual cito abaixo um trecho:
“Na década de 1980, a onda de repressão que se espalhava pela América Latina chegou na América Central com muita força. Em El Salvador, a década abriu com o assassinato de Dom Oscar Romero... Poucos dias antes de o religioso ter enviado uma carta ao presidente Jimmy Carter pedindo que parasse com a ajuda à junta militar local, ajuda que ‘irá certamente aumentar a injustiça aqui e fortalecer a repressão que vem sendo imposta contra as organizações populares na luta que empreendem em defesa dos direitos humanos mais fundamentais’.
A ajuda americana logo vingou... Uma das forças mais mortíferas era o batalhão Atlacatl, que abateu milhares de campesinos, trabalhadores e ativistas dos direitos humanos, padres, e outros que se encontravam no caminho. A década de horror terminou em novembro de 1989, quando o batalhão Atlacatl, renovado com os treinamentos da escola de contrainsurgência John F. Kennedy, recebeu o despacho de um alto comando para assassinar seis grandes intelectuais latino-americanos, padres jesuítas, na universidade local na presença de uma empregada e de sua filha, além de tantas outras testemunhas. O prognóstico sombrio de Dom Oscar Romero se realizou também nos países vizinhos.O horror se aprofunda mais ainda com o silêncio que se abateu nos EUA e no Ocidente em geral”.
Há pouco mais a acrescentar. Basta dizer que, embora ocorridos em El Salvador durante este período fossem tremendamente horrendos, estes eventos aconteceram no contexto de várias décadas de turbulência na região com conexões causais de fácil identificação com a política externa americana. Quando ampliamos o foco neste sentido, o número de mortes em conexão com Washington alcança, possivelmente, a casa das centenas de milhares, espalhados por uma ampla gama de países latino-americanos.
Daniel Kovalik, advogado na área dos direitos humanos e professor na Universidade de Pittsburgh, está entre um pequeno grupo de acadêmicos que dedica o seu tempo para escrever sobre o legado amargo destes crimes. Quando entrei em contato com ele para falar sobre o assunto, contou-me que a “guerra americana contra a América Latina” começou, de fato, em 1962 em resposta ao surgimento da Teologia da Libertação, uma escola de pensamento com influências marxistas dentro do catolicismo e que enfatizava a justiça social e defendia o ativismo pacífico no intuito de melhorar a vida dos pobres.
Os ataques americanos em várias sociedades abaixo de sua fronteira sulista “foram projetados, em grande parte, para dissipar o movimento”, diz Kovalik, acrescentando que “sabemos a partir dos manuais e exercícios de treinamento que a Escola das Américas, administrada pelos EUA, formou militares latino-americanos para enxergarem padres paroquiais como suspeitos e, então, atacá-los em conformidade”.
“O resultado foi o assassinato de dezenas de padres, freiras e uma série de bispos a partir de 1962 e que continua, na verdade, no presente momento”, falou.
Assim como indicou Kovalik, as consequências desta guerra contra a Teologia da Libertação e outros movimentos associados a ela no continente podem ser vistas atualmente nas sociedades que ainda estão se recuperando do passado brutal que tiveram. Por outro lado, uma porção substancial daqueles estadunidenses que têm uma parte de responsabilidade pelos horrores cometidos naquele período continua confortavelmente em seus lugares, sem responsabilização alguma.
Tal injustiça é história conhecida; o legado destrutivo de Washington na América Latina ainda é, infelizmente, notícia para muitos no norte do Rio Grande, em El Salvador.
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Noam Chomsky exclusivo: Papa Francisco, Oscar Romero e o horror da política externa de Reagan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU