Por: Cesar Sanson | 27 Julho 2014
O historiador Shlomo Sand, nascido na Áustria e radicado em Israel desde os primeiros momentos da criação do estado judeu no Oriente Médio, na década de 1940, é uma das figuras mais conhecidas da esquerda israelense: seu livro A Invenção do Povo Judeu, de 2008, em que o autor questiona a promiscuidade entre fato histórico e mitologia nacionalista na narrativa de construção de Israel, esteve no topo dos mais vendidos no país por 19 semanas e é o texto acadêmico israelense mais traduzido para outras línguas na história, com mais de 80 mil exemplares vendidos apenas na França.
A notoriedade, no entanto, não significa popularidade na terra natal. Rechaçado por militantes sionistas, judeus ortodoxos, articulistas da mídia israelense e especialistas da historiografia judaica tradicional, Sand segue investindo na polêmica como forma de chacoalhar uma sociedade que está "mais cruel, mais feia e muito mais racista" do que nunca. "Não sei se seus leitores sabem que muitos dos israelenses sobem em montanhas no entorno de Gaza para assistir aos bombardeios", conta o professor, ao falar sobre o conflito entre Israel e o grupo Hamas, que já deixou mais de 600 civis palestinos mortos por bombardeios aéreos e ações militares em terra.
Sand questiona ainda o sequestro de três colonos israelenses como principal motivação da guerra: de acordo com o professor, logo após o sequestro, em abril deste ano, o estado de Israel rompeu acordo fechado em 2011 pela libertação do soldado Gilat Shalit, que havia sido capturado por forças palestinas, e voltou a prender os mais de mil prisioneiros políticos liberados àquela oportunidade, inclusive parlamentares da Autoridade Palestina, como forma de provocar o Hamas a entrar no conflito armado. "Se você me perguntar se o governo de Israel queria esta guerra, tenho de dizer que não tenho certeza, mas acredito que sim", resume.
Para o professor, a situação atual pode não ter mais solução "de dentro para fora" e depende de pressão externa. "A única coisa que eu acho que pode provocar mudança é pressão externa, com exceção do terror. Soube que o Brasil tomou posição e retirou sua embaixadora do país. E isso me deixou muito feliz. Esse é o caminho. A América Latina, como um bloco, pode fazer muita pressão e pode ser muito importante para resolver conflitos", afirma.
A reportagem e entrevista é de Diego Sartorato e publicada pela Rede Brasil Atual – RBA, 26-07-2014.
Eis a entrevista.
Existem motivos econômicos, sociais ou políticos para que uma nova rodada de agressões a Gaza tenha início neste momento? Trata-se mesmo apenas de uma retaliação pelo sequestro e morte de três colonos?
É muito difícil, neste momento, entender todos os motivos para esta nova guerra entre Israel e Hamas, mas eu vou tentar responder à pergunta 'há razões políticas?' Há. Não vejo motivação econômica ou social, mas a razão política, acredito, mesmo que não tenha provas, é a relação entre o Hamas e a nova liderança da Autoridade Palestina, que levou o Hamas a aceitar se unir ao Fatah em um governo unificado. A guerra atual foi provocada após o sequestro de três colonos, mas como ela foi provocada? Sem nenhuma prova de que o Hamas tenha qualquer envolvimento nos sequestros, sem nenhuma condição de acusar o Hamas diretamente pelo que aconteceu com esses colonos, Israel começou a prender todos os prisioneiros que foram liberados no acordo de Gilat Shalit. Israel rompeu todas as regras do jogo. E, desta vez, quebraram o acordo abertamente, prendendo todos os prisioneiros que haviam sido liberados, inclusive membros do parlamento. Então não deixaram muita opção para o Hamas em Gaza. Se você me perguntar se o governo de Israel queria esta guerra, tenho de dizer que não tenho certeza, mas acredito que sim.
Como tem sido a reação do povo israelense a este novo conflito?
Não sei se seus leitores sabem que muitos dos israelenses sobem em montanhas no entorno de Gaza para assistir aos bombardeios. É importante compreender que a polarização político-ideológica da sociedade israelense hoje em dia é muito mais radical do que antes. A maior parte de Israel está muito mais racista do que em comparação aos colonizadores dos anos 1960. A influência da mídia, conduzida pela intelligentsia israelense, levou a uma radicalização muito grande. Então, hoje, a sociedade israelense é mais cruel, mais feia e muito mais racista.
A expectativa mundial é por uma mudança cultural em Israel que siga no sentido oposto...
Não acredito que Israel, no ponto em que está, possa ser mudado de dentro para fora. Eu já perdi esperança que algo positivo possa vir da política ou da sociedade israelense. O que quero dizer com isso é que não existe nenhuma força política que possa se comprometer com um processo de paz com os palestinos e nem mesmo os palestinos moderados. O processo de paz que os americanos tentaram criar foi uma grande piada. O representante de Obama para as conversas de paz Israel-Palestina no ano passado, Martin Indyk, antes de sua carreira diplomática, era um lobista da Aipac (Comitê América-Israel de Assuntos Públicos, na sigla em inglês, grupo que advoga por políticas pró-Israel junto ao Congresso dos Estados Unidos). Não acredito que Israel possa mudar por dentro se a situação econômica não mudar. A única coisa que acho que pode provocar mudança é pressão externa, com exceção do terror. Toda pressão externa, que não sejam atos de terror, irá ajudar a garantir a existência do estado de Israel. Soube que o Brasil tomou posição e retirou sua embaixadora do país e isso me deixou muito feliz. Esse é o caminho.
O senhor soube da resposta do governo israelense?
Não.
Eles condenaram a postura do governo e disseram que o Brasil é um “anão diplomático”.
(Risos) Ainda não vi isso na imprensa israelense, talvez tenha saído apenas na TV, mas, ora, eu conheci a embaixadora brasileira anterior em Israel (Maria Elisa Bittencourt Berenguer). Uma mulher muito inteligente. A diplomacia brasileira merece respeito.
A diplomacia brasileira tentou envolver-se na solução de conflitos no Oriente Médio em 2010, quando se uniu à Turquia para chegar a um acordo sobre o enriquecimento de urânio no Irã.
Sim, me lembro do esforço diplomático do Brasil e da Turquia e aquele episódio também me deixou muito feliz. A América Latina, como um bloco, pode fazer muita pressão e pode ser muito importante para resolver conflitos. Já que os Estados Unidos não aceitam interromper seu apoio incondicional a Israel... Você sabia que na semana passada Israel pediu ao Departamento de Defesa mais de US$ 500 milhões a mais do que já recebem em apoio, para a guerra atual? E os Estados Unidos aceitaram. Eles não dão o dinheiro, dão armas, porque assim pagam dívidas com a indústria de armamento.
Como podem os Estados Unidos imporem sanções à Rússia pelo que ocorreu na Crimeia e, ao mesmo tempo, não se atreverem a mover sanções contra Israel, mesmo que a população da Crimeia não tenha se oposto à ocupação como os Palestinos seguem resistindo à ocupação israelense? Eu espero que a América Latina possa nos ajudar, organizando a pressão internacional. E quando digo nos ajudar, digo ajudar o Estado de Israel a continuar existindo, ao lado do Estado Palestino. Eu não sou contra a existência do Estado de Israel. Sou a favor da existência de dois estados confederados sob uma instância superior de governo.
Não é possível propor a uma das sociedades mais racistas do mundo que ela passe a ser uma minoria sob um Estado único. Não é uma utopia. É uma estupidez. Ao mesmo tempo, não acredito que dois Estados possam existir completamente separados no Oriente Médio nas condições atuais, em que Israel está atrelado aos palestinos. Essa seria a forma para que ambos mantivessem a soberania.
Você tem de entender que, para que haja uma solução de um estado, você precisa da concordância de ambos os lados. Como chegar a isso nas condições atuais? Israel está próximo de sair vitorioso e sabe disso. Vou te dizer o que estou escrevendo em meu próximo artigo: a história mostra que a adoção de modelos pode causar muitos danos.
Dou três exemplos: a revolução bolchevique, que interrompeu a primeira guerra mundial, se tornou um modelo muito ruim de criação de movimentos revolucionários, que fez muito mal aos movimentos de trabalhadores na Europa nos anos 1920 e 1930, gerou uma divisão no movimento dos trabalhadores. A vitória da revolução cubana se tornou um modelo para a América Latina, mas era um modelo ruim, porque não ajudou a América Latina a se livrar das oligarquias norte-americanas. O terceiro exemplo é a África do Sul. A solução de um Estado na África do Sul se tornou o modelo para o conflito Israel-Palestina no Oriente Médio, mas a diferença é que a classe alta branca na África do Sul era completamente dependente economicamente dos trabalhadores negros. Eles não poderiam criar uma sociedade sem eles. Já os israelenses podem viver sem os trabalhadores palestinos. Eles fazem dinheiro com a situação, mas podem viver sem o conflito. Além disso, em algum momento, a existência do movimento negro nos Estados Unidos e uma mudança de relações de poder lá colocaram a diplomacia norte-americana com a África do Sul em muitas contradições. Mais uma vez, não é o caso com Israel.
Existe uma força considerável contra a guerra no parlamento e nas ruas? Como a oposição e a esquerda israelense têm se posicionado neste momento?
Os partidos de esquerda não são de massas em Israel e não têm muito espaço no parlamento. Temos partidos comunistas compostos por uma maioria árabe e uma esquerda judia. As esquerdas se uniram, nas últimas semanas, pela primeira vez em muito tempo, para atos políticos contra a guerra, mas, também pela primeira vez, provou-se que está muito perigoso organizar manifestações em Israel.
Nunca tivemos uma reação da direita como temos hoje nas ruas e está cada vez mais perigoso se manifestar contra a guerra em Israel. Além disso, não há um grande apoio popular à causa. Como eu disse, as relações estão muito mais radicais. E falo dos cidadãos de Israel.
Semanas atrás, houve uma tentativa de diálogo de paz com a intermediação do papa Francisco. Essa iniciativa não teve nenhuma influência positiva antes do reinício das hostilidades?
O diálogo intermediado pelo papa foi uma piada maior ainda. De um lado, você tinha o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e, do outro, Shimon Perez, que não é nada. Ele não representa o governo de Israel. Não tem autoridade para negociar nada. É um político em aposentadoria com 91 anos de idade que esteve lá, ao lado do papa, apenas para participar de um show midiático ocidental. É inacreditável. O líder de Israel, de mesma autoridade que Abbas, é Benjamin Netanyahu, mas ele não se apresenta ao diálogo. Neste momento, duvido que ele aceitaria esse convite. Aquele encontro foi um grande álibi para o governo israelense.
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“A sociedade israelense está radicalizada e racista demais para resolver problemas de dentro para fora” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU