Por: André | 05 Junho 2014
Para aqueles que decididamente questionam a agricultura industrial, ou seja, aquela agricultura que se organiza com o único propósito de gerar rendimentos econômicos e que para isso, como uma patrola, explora pessoas e terras, a decisão da Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) de dedicar este ano de 2014 à agricultura familiar produziu sentimentos opostos. É o apelativo familiar a melhor definição para traçar a linha que separa a agricultura das sociedades anônimas, das cotizações em bolsa e das sementes esterilizadas da agricultura camponesa dos mercados locais e da biodiversidade cultivada? Basta defini-la como aquela atividade agrária operada por uma família e que depende principalmente da mão de obra familiar, incluindo tanto mulheres como homens?
Fonte: http://bit.ly/1x9X6JI |
A reportagem é de Gustavo Duch e publicada no jornal mexicano La Jornada, 01-06-2014. A tradução é de André Langer.
É a família o único modelo para desenvolver agricultura camponesa em pequena escala? Não é a família, de fato, muitas vezes o cenário da perpetuação do patriarcado que tanto dano causa à criação de novos imaginários e paradigmas também na revisão do modelo produtivo?
Sem que muitas destas dúvidas se tenham solucionado, acredito que podemos afirmar que este marco institucional está ajudando a visibilizar e valorizar a agricultura em pequena escala. E boa parte da informação que a FAO está transmitindo reflete o que durante anos os próprios movimentos camponeses e outras instituições que defendem o paradigma da soberania alimentar viemos repetindo.
Para quem ainda mantém discursos pejorativos sobre a agricultura camponesa e agroecológica, deve se sentir interpelado ao ler em textos da FAO que a agricultura em pequena escala deve ser colocada no centro das políticas agrícolas, ambientais e sociais nas agendas nacionais, pois, entre outras coisas, é uma parte importante da solução para conseguir um mundo livre da fome e da pobreza, e em muitas regiões esta agricultura é a principal produtora dos alimentos que consumimos diariamente. Ou também outras mensagens fundamentais, como essa de que a agricultura que se pratica em pequena escala é fundamental para a proteção da biodiversidade agrícola mundial, assim como produtora de muitos empregos agrícolas e não agrícolas. Também se sentirão incomodados ao ler dados e estudos da FAO em que mostra suas capacidades produtivas sem deixar de perder uma das suas grandes virtudes, a sustentabilidade.
Mas, entre os dados que a FAO nos oferece há um dado fundamental a se questionar, um dado transcendental na hora de definir que medidas são necessárias para favorecer esta agricultura: a porcentagem de terra fértil em que trabalham as mais de 600 milhões de pequenas propriedades camponesas existentes no mundo. Pois, enquanto a FAO situa este número em torno dos 70%, os dados calculados, país por país, no novo relatório da organização Grain, situa essa porcentagem em escassos 24% do total da terra agrícola. Ou seja, que embora 90% das pequenas propriedades agrícolas do mundo sejam pequenas (com uma média de dois hectares), estas só dispõem de uma terça parte do total da terra fértil. E num contexto em que as políticas agrárias continuam favorecendo a grande propriedade, a especulação com compras e monopólio de terra fértil a torto e direito e a monocultura dedicada à indústria alimentar (apenas os cultivos de soja, colza, palma africana e cana de açúcar nos últimos 50 anos triplicaram sua extensão) vão ganhando terreno. Desta maneira, a pequena e injusta porcentagem, ano a ano, vai se reduzindo mais ainda.
Esse deveria ser a mensagem central deste ano internacional, e parece que a FAO se esquiva. Por quê? Que interesses ela protege? Parece que seu posicionamento a favor da agricultura familiar é apenas um falso idílio, um catálogo de fotografias exóticas do National Geographic que mostram as bondades da agricultura camponesa como precioso reduto a preservar em museus de antropologia. Mas, se verdadeiramente entendêssemos que a agricultura em pequena escala é o meio de vida da maioria das camponesas e camponeses do mundo e a que, segundo os dados, tem maior capacidade produtiva atual e futura de alimentos, denunciaríamos sem medo que a propriedade da terra está em outras mãos e serve a outros interesses.
Esse é o assunto central a reclamar com urgência: a redistribuição da terra fértil a favor da agricultura familiar em pequena escala, em qualquer modelo comunitário de vida, como um bem comum e inalienável, fora do âmbito do mercado. Os argumentos do Ano Internacional da Agricultura Familiar, quer queira ou não a FAO, também o evidenciam.
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A agricultura despossuída da terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU