29 Mai 2014
"O que acontece a um país quando seu Ministro da Justiça se coloca acima da Constituição e decide “ajustar direitos”? Que instabilidades jurídicas para os direitos dos povos indígenas geram tal ação política do governo federal, promovendo “acordos” de revisão de extensão de áreas declaradas? Não deveria o Estado reafirmar o direito constatado e garantir a sua efetividade, mesmo que emperrada a questão nos tribunais?", perguntam Marcelo Zelic, Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória e Jair Krischke, presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos, em artigo publicado pelo Jornal GGN, 28-05-2014.
Segundo eles, "diminuir 85% das terras dos Guaranis do Rio Grande do Sul, reproduz a pratica política de confinamento aplicada a seus parentes no Mato Grosso do Sul nos anos de 1970. O Estado brasileiro em 2014 busca assim a solução do problema?"
Para Marcelo Zelic e Jair Krischke, "frente a tantas violações de direitos humanos contra os povos indígenas brasileiros, apontadas nos estudos da Comissão Nacional da Verdade, não deveria a título de reparação, o Estado brasileiro rever suas praticas e mudar de conduta, demarcando suas terras e cuidando do bem estar destes povos? Repará-los é preciso, fundamentalmente um dever do Estado e de nossa sociedade. Reparar nossos graves erros para com eles é demarcar suas terras e não ajustar seus direitos".
Eis o artigo.
As declarações do Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo sobre as “negociações”, que realizou recentemente no Rio Grande do Sul com os povos Guarani e Kaingang, para resolver o conflito de terras que se arrasta há décadas neste estado, acende o sinal vermelho para aqueles que se preocupam com os rumos dos direitos humanos no Brasil.
A solução encontrada é de estarrecer: retirada de direitos para os Guaranis e intimidação do movimento Kaingang com a prisão de suas lideranças.
Segundo o site da Fundação Nacional do Índio a situação da terra indígena de Mato Preto foi reconhecida como de ocupação tradicional do povo Guarani no Rio Grande do Sul, sendo portanto constitucionalmente uma terra declarada indígena, aguardando somente os procedimentos finais do executivo para sua demarcação, homologação e a consequente desintrusão dos invasores que usurparam os direitos Guaranis a estas terras no passado.
Expulsos de suas terras na década de 50, as famílias Guaranis vivem acampadas na beira da estrada RS-135 desde setembro de 2003, travando uma dura luta pela sobrevivência, manutenção de sua cultura e demarcação de suas terras, cujo estudo de identificação foi realizado pela antropóloga Flávia de Melo, aprovado pela FUNAI, a quem cabe por direito a realização destes estudos e foi reconhecido através da Portaria n º 2.222 do Ministério da Justiça em 21/09/2012. Tudo realizado como previsto na Constituição do nosso país.
Pelo “ajuste de direitos” anunciado em entrevista coletiva sem a presença das lideranças indígenas da região, o Ministério da Justiça, que deveria zelar pelo cumprimento da Constituição e garantir os direitos indígenas, reduz as terras do povo Guarani de Mato Preto em quase 85% de sua área declarada.
Qual o contexto desta “mediação de conflito” realizada pelo Ministro da Justiça?
A “negociação” com os Guaranis deu-se algumas semanas depois de uma controvertida operação da Polícia Federal, que prendeu no dia 09 de maio sete lideranças Kaingang, convidadas a negociar com o estado brasileiro solução para o conflito em suas terras. Saíram presos logo após o início da reunião, sob acusação, sem provas, de que teriam participado do assassinato de dois agricultores gaúchos em conflitos de terra na região, pegando o Governo do Rio Grande Sul, anfitrião da reunião, de surpresa, segundo sua assessoria.
A comunidade Guarani que há mais de 10 anos vive precariamente na beira da estrada, numa correlação de força desigual, sob impacto de forte preconceito, não aguentando mais ameaças verbais e convivendo com constantes tiros para o alto disparados por agricultores, numa ação intimidatória de persuasão pelo medo, acabou por ceder ao Ministro conforme declarou o cacique de Mato Preto, Joel Kuaray ao jornalista Leonencio Nossa: "A gente aceita diminuir nossa terra porque hoje estamos na beira da linha do trem". "A gente tem o sentimento de que as ameaças vão diminuir, porque a redução da terra vai exigir a retirada de um número menor de agricultores da área."
O que acontece a um país quando seu Ministro da Justiça se coloca acima da Constituição e decide “ajustar direitos”? Que instabilidades jurídicas para os direitos dos povos indígenas geram tal ação política do governo federal, promovendo “acordos” de revisão de extensão de áreas declaradas? Não deveria o Estado reafirmar o direito constatado e garantir a sua efetividade, mesmo que emperrada a questão nos tribunais?
Como deve agir a cidadania quando se constata que o “ajuste de direitos” celebrado de forma leonina, fere preceitos legais e beneficia o lado não coberto pela Constituição? É este um exemplo de país que respeita e trabalha para o desenvolvimento dos direitos humanos e o zêlo pelas populações originárias? Ou aponta o advento de uma nova era do manda quem pode, obedece que tem juízo?
Ao se aproveitar da vulnerabilidade física e emocional de uma comunidade, para “celebrar” um acordo, reafirmamos, leonino, lesivo aos direitos constituicionais dos Guaranis, o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo fere ou não fere o Código de Conduta da Alta Administração Federal? Irá o Ministro da Justiça assinar uma portaria de desmarcação de terras indígenas, anulando a portaria nº 2.222, sobre as terras Guaranis de Mato Preto, assinada por ele mesmo em setembro de 2012? É ética tal solução encontrada?
Diminuir 85% das terras dos Guaranis do Rio Grande do Sul, reproduz a pratica política de confinamento aplicada a seus parentes no Mato Grosso do Sul nos anos de 1970. O Estado brasileiro em 2014 busca assim a solução do problema? Quanto tempo levará para o crescimento populacional desta comunidade apresentar o quadro desolador e desagregador de confinamento em que vivem os Guarani-Kaiowá nas reservas a eles impostas durante a ditadura militar? Vale registrar que somente em 2013 73 indígenas se suicidaram no Mato Grosso do Sul. Isto não é um caso de saúde pública gerado pelo confinamento em que vivem? Reconhecer e demarcar os 4.230 hectares da Terra Guarani de Mato Preto não é o bom caminho da justiça social?
Em tempos pré-eleitorais, onde tudo se distorce e é usado por aqueles que almejam o poder, devemos calar frente às violações de direitos humanos cometidas pelo Estado? Em que este silêncio eleitoral beneficiará os direitos dos povos indígenas? Quem perde quando este tipo de discussão fica relegado a segundo plano e se torna objeto de muito patrulhamento ideológico sobre quem as levanta? Se por uma estratégia eleitoral é preciso calar sobre violações de direitos, perde o país.
Frente a tantas violações de direitos humanos contra os povos indígenas brasileiros, apontadas nos estudos da Comissão Nacional da Verdade, não deveria a título de reparação, o Estado brasileiro rever suas praticas e mudar de conduta, demarcando suas terras e cuidando do bem estar destes povos? Repará-los é preciso, fundamentalmente um dever do Estado e de nossa sociedade. Reparar nossos graves erros para com eles é demarcar suas terras e não ajustar seus direitos.
No campo dos direitos humanos é fundamental enquanto nação enfrentarmos estas questões, ainda mais em períodos eleitorais, para evitarmos mais retrocessos como a PEC 215, a portaria 303 da AGU e o desmonte da FUNAI, efetivando o estado democrático de direito em nosso país.
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O Ajuste de Direitos proposto pelo Ministro da Justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU