Por: André | 29 Mai 2014
Já duas vezes Palma de Ouro, pelos filmes Rosetta, em 1999, e A Criança, em 2005, Jean-Pierre e Luc Dardenne (foto) voltaram para esta 67ª edição do Festival de Cannes com um filme brilhante e tenso. Deux jours, une nuit (Dois dias, uma noite) é a história de uma mulher que, para salvar o seu trabalho, tem um fim de semana para convencer seus colegas a renunciar a uma bonificação.
Fonte: http://bit.ly/1kM3MYL |
A entrevista é de Frédéric Theobald e está publicada no sítio da revista francesa La Vie, 23-05-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como vocês passaram da realidade à ficção?
Nós organizamos a realidade. Nós sempre partimos de um personagem, no caso a Sandra, que nós conhecemos há uma década, ao ler diversas notícias. A ficção, ao contrário do documentário, permitiu-nos contar a história de uma mulher, considerada “de menor performance”, que, através dos outros, vai recuperar a confiança em si. Ela cai, em seguida, reinicia cada vez que um dos seus colegas lhe diz: “Se você acredita que vale a pena, nós nos interessamos em você”. Ao longo do caminho, Sandra recria a solidariedade em uma sociedade em que reina o medo. E esta solidariedade, por sua vez, a transforma.
Muitas vezes, em seus filmes, como Rosetta ou A Criança, trata-se de obrigar o personagem a se colocar; aqui, ao contrário, trata-se de colocar um corpo em movimento...
Sim, no começo Sandra está depressiva, no final ela está animada! E está feliz.
Outro elemento novo com 'Dois dias, uma noite': vocês não filmaram uma família disfuncional!
Primeiro, temos um pai que ama seus filhos e que não vai vendê-los! É quando o personagem de Manu, o marido, entra na nossa discussão como aquele que poderia colocar o corpo de Sandra em movimento. Então a cercamos de uma família, dos seus dois filhos e do marido, que era de certa forma seu “coach”. Mas ela precisou que Manu não estivesse tão perto, do contrário poderia infantilizá-la.
O filme mostra como a violência econômica se transfere aos indivíduos, de maneira anônima, ela se encarna, adquire um rosto humano...
Esta violência já nasce do dever de aceitar um contrato, uma chantagem, feita pelo patrão e pelo gerente (a demissão de Sandra ou a renúncia a uma bonificação de 1.000 euros). Sandra, por sua vez, reintroduziu a violência, ela faz as coisas acontecerem. Cada duelo entre Sandra e seus colegas coloca seus interlocutores em conflito consigo mesmos. Sandra também deve lutar contra si mesma. Mais de uma vez, quando se sente derrotada, ela diz: "desculpe-me". Ela compreende os outros operários da fábrica quando não querem renunciar ao bônus, mas, ao mesmo tempo, ela fica desapontada quando eles se recusam a isso. É terrível estar em guerra consigo mesmo!
A moralidade de uma sociedade se joga, em primeiro lugar, no terreno econômico e social?
Ser solidário sempre foi nas greves, nos grandes movimentos sociais, um gesto moral. A classe operária foi uma experiência do universal. Através de reuniões, discussões sindicais, houve a ideia de uma solidariedade, ou seja, do bem comum, em vista do qual eu sacrifico um bem pessoal. Este é um grande discurso! Mas havia esta experiência, esta reivindicação, da emancipação de todos, independentemente das diferenças.
Os personagens que vocês filmam moram em casas pequenas. Não é a pobreza de Rosetta, mas tem-se a impressão de que foi ao longo das reuniões com os colegas de Sandra que a crise ganhou terreno...
A maioria é assalariada, mas tem dois empregos: em um concerta carros à noite, no outro trabalha em um supermercado. Mais de um diz: "eu gostaria de abrir mão da bonificação, mas não posso...". A crise não atinge apenas as pessoas marginalizadas, os mais pobres.
Por que você escolheu Marion Cotillard?
Não se pode dissociar Marion Cotillard da estrela. Nós a conhecemos quando ela protagonizou Ferrugem e Osso, de Jacques Audiard, filme do qual fomos co-produtores. E nós tivemos uma espécie de flechaço de cinema! Fomos surpreendidos. Nós conversamos com ela sobre um cenário em torno de uma médica nos subúrbios e ela mostrou-se interessada no projeto. Mas esta história de médica não avançou muito e apareceu a Sandra. Seu personagem ainda não estava muito elaborado, mas nós sabíamos que seria uma mulher frágil que seria o fio condutor do filme. E Marion poderia encarnar essa fragilidade com sutileza. Ela não tem uma presença que se impõe, ela sabe estar lá sem estar, como Depardieu em algumas cenas de Loulou, de Pialat. Nós falamos com ela sobre os nossos métodos: um mês e meio de ensaios, 52 dias de filmagens, todos os atores remando na mesma galera, sem maquiagem, sem motorista ou camarim... Ela nos respondeu: “Está perfeito!”
Quais são as regras de trabalho de vocês?
Nós temos necessidade absoluta de estabelecer com cada um dos atores uma relação de confiança mútua. É para isso que servem, em primeiro lugar, os ensaios. É preciso que cada um concorde em se desnudar e abandone as posturas que são como armaduras e impedem os personagens de viver diante da câmera. Essa confiança foi ainda mais necessária no momento em que vários intérpretes vinham para uma ou duas cenas. Portanto, eles tinham que ser bons 100% imediatamente. Era preciso que ousassem nos dizer: "Eu tenho uma ideia" ou então "esta resposta não a sinto...". Nós reescrevemos muitas passagens durante os ensaios.
Da nossa parte, nós expressamos tudo, porque estamos em dois. Se você está sozinho com a equipe, se você tem dúvidas, se você disser "eu me enganei", você provavelmente não ousaria mostrar isso ao ator. Nós conversamos diante deles. O que fez Cécile de France dizer (no filme O Garoto da Bicicleta, de 2011): “Um diretor que, no primeiro dia das filmagens admite que errou, eu nunca tinha visto!”
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“Recriar a solidariedade em uma sociedade em que reina o medo”. Entrevista com os irmãos Dardenne - Instituto Humanitas Unisinos - IHU