30 Abril 2014
"A tragédia urbana que envolveu o menino Bernardo, é réplica da tragédia rural que envolveu este outro menino que passou para a história e a literatura, com o apelido de Negrinho do Pastoreio, tal como o descreveu o cientista Saint-Hilaire que passou por aqui por várias cidades do nosso Rio Grande e que nos deixou a descrição, em legítimo francês e depois de maneira erudita e literária pelo escritor Simões Lopes Neto", escreve Antonio Cechin, irmão marista e militante dos movimentos sociais e amientais.
Segundo ele, "a catequista que preparou Bernardo para a primeira comunhão cumpriu muito bem seu dever de ajudar a criança, mas bem que teria podido fazer muitas coisas mais, como, por exemplo visitar mais vezes a família e melhor se inteirar dos sofrimentos de Bernardo, ainda mais que ele era também coroinha da paróquia".
Eis o artigo.
Quando tomamos conhecimento da tragédia que envolveu esse menino de 11 anos de idade, da cidade de Três Passos, RS, nos pareceu notícia tão inverossímil que a tomamos como uma daquelas que caracterizam a imprensa marron. Revestem tudo de sensacionalismo a fim de melhor venda de seus pasquins.
O fato é que a notícia, de começo, impossível de ter acontecido, foi tomando jeito, dia após dia, de um verdadeiro terremoto. Em ondas concêntricas foi atingindo mentes e consciências, desde o seu epicentro, que foi a modesta cidade interiorana de Três Passos. Alcançou hoje, a magnitude de um tsunami no Rio Grande do Sul, se espraiando por todo o Brasil e pelo mundo inteiro devido a seu ineditismo macabro.
A tragédia está dando de bandeja, sobrando para todo o mundo: para a família em que nasceu, para os parentes, para os vizinhos, para a escola em que estudava a criança, para a paróquia da qual era coroinha e em que fez sua primeira comunhão e em que se preparava para ser crismado, para a polícia e principalmente para a delegada que detalha o caso, para os cientistas sociais – sociólogos, psicólogos, psiquiatras, pedagogos, antropólogos, etc. – para o Ministério Público, para os cidadãos todos de Três Passos, de Frederico Westphalen e de Santa Maria, respingando em ondas concêntricas, desde o microprocesso conjuntural para o macro, para todo tipo de responsáveis sociais.
A cada dia surgem detalhes novos, que vão se somando e fazendo com que tenhamos a impressão de que Bernardo, aos 11 anos, tenha sido assassinado não por pessoas humanas, mas por verdadeiros monstros. As descrições que nos traz a mídia são horríveis e asquerosas ao máximo. A todo instante, todos temos que nos reposicionar, desde o lugar social em que nos encontramos, para um sempre novo questionamento, a partir de nossa própria realidade em que trabalhamos e do chão em que pisamos. Chegamos ao fundo do poço quando nos obrigamos a questionar a própria espécie humana.
Retomando o início deste artigo, afirmamos que a tragédia acontecida deu de sobejo, sobrando para todo o mundo, lemos no jornal Zero Hora do dia 27 de abril, à página 34:
“Ofício nº 0177/2013, do Centro de Referência Especializada da Assistência Social para o Ministério Público, em 3 de dezembro de 2013:
O senhor Leandro (pai do menino) nos recebeu prontamente e em sua fala negou todos os fatos”. “Outro fato que nos relataram, nos chamou a atenção e que vale aqui ressaltar é que com apenas 09 anos (idade anotada errado, pois tinha 11 anos) foi ele que providenciou, juntamente com sua catequista, toda sua documentação para poder cumprir o sacramento da comunhão. Nem seu pai, nem sua madrasta acompanharam o ano catequético de Bernardo, sendo que não foram em nenhuma reunião, nem mesmo na primeira comunhão do filho.”
“A comunidade de Três Passos, em geral, sabe que Bernardo é negligenciado por seu pai e sua madrasta. O fato que ela nos apresenta é apenas um menino de 09 anos e que não está recebendo os devidos cuidados que a idade lhe exige.”
Do episódio, sobrou e muito, para nós todos que somos Catequistas e Evangelizadores e que fazemos parte de uma Comunidade de Fé.
A tragédia Bernardo Boldrini tem tudo a ver com a verdade evangélica que Deus é Amor. Nos personagens todos que se envolveram no fatídico acontecimento, é vivido um duelo entre amigos da Vida (biófilos) e amigos da morte (necrófilos). Duelam também entre si, a ternura e a maldade, o amor e o ódio.
Deus como Fonte de todo o Amor “nos amou primeiro” como diz a Bíblia. No episódio inicial do livro do Gênesis, Deus Pai Criador começou construindo a casa em que seus filhos queridíssimos deveriam morar. Fez surgir do nada, uma esplêndida mansão: a natureza e todo o universo. Só depois disso, reunidos em Comunidade de três pessoas, o Pai, o Filho e Espírito Santo proclamam: “façamos o Homem à nossa imagem e semelhança!,” e fazem saltar para dentro da vida, o ser humano. Se Deus não nos tivesse amado primeiro, a criatura humana, não teria tido possibilidade de amar. A beleza da Casa Humana, assim como a pintura de um artista, é o retrato de Deus, seu autor. É São Paulo dizendo em sua pregação em Atenas, capital da Grécia, em plena praça pública: “Deus nos falou primeiro através da criação: a natureza e todo o universo, falou depois pela boca dos patriarcas e dos profetas e por último pelo seu próprio Filho, o Homem Jesus de Nazaré”.
Numa família, o amor precede e procede ao nascimento dos filhos. Por isso o pai e a mãe tem que se amar mutuamente para poderem, em seguida, dar amor aos filhos, simplesmente porque o filho tem que aprender do amor dos pais e por extensão da Comunidade, pelo tempo inteiro em que for criança, adolescente, jovem. Sem esses diferente graus de aprendizado do Amor humano completo, serão criaturas truncadas, incompletas. Existe até uma expressão popular que exprime o amor em criança: amor de menino, água em cestinho.
Na sequencia do que dissemos no começo do artigo, diz o Centro de Referência especializado de Assistência Social do município de Três Passos, “foi o menino Bernardo que providenciou, juntamente com sua catequista, toda sua documentação para poder cumprir o sacramento da comunhão.”
Transparecem do evento tenebroso, para os evangelizadores tanto das Comunidades Eclesiais de Base, quanto das paróquias, as palavras referenciais do Homem Jesus de Nazaré: “deixem vir a Mim as crianças!”; “quem não for como uma criança, não entrará no Reino dos Céus!” “Ai de quem escandalizar a um desses pequeninos! Melhor houvera sido que ao escandalizador lhe tivessem amarrado ao pescoço, uma mó de moinho e o tivessem lançado no fundo do mar!”
A catequista que preparou Bernardo para a primeira comunhão cumpriu muito bem seu dever de ajudar a criança, mas bem que teria podido fazer muitas coisas mais, como, por exemplo visitar mais vezes a família e melhor se inteirar dos sofrimentos de Bernardo, ainda mais que ele era também coroinha da paróquia.
Acho que há uma grande lacuna na catequese das crianças em nossas paróquias. Na arquidiocese de Paris, onde frequentei o Instituto Superior de Catequese, em cada paróquia há dois tipos de catequistas: os paroquiais e as mães catequistas que reúnem uma vez por semana as crianças para uma catequese familiar. O conhecimento das famílias dos catequizando é total e absoluto no sentido de, através dos filhos atingir os pais.
Como evangelizadores que somos, no arrastão das Assembleias episcopais de Medellin e Puebla, marcos que foram da Catequese Libertadora do modelo novo de Igreja Ameríndia, também chamada Igreja da Teologia da Libertação, nos encontramos frente ao menino Bernardo, diante de um Sinal dos Tempos, tal como foi definida a Catequese dos sinais dos tempos, especial para nosso continente. Sinal que nos questiona em termos de fé e de militância social e política.
A tragédia urbana que envolveu o menino Bernardo, é réplica da tragédia rural que envolveu este outro menino que passou para a história e a literatura, com o apelido de Negrinho do Pastoreio, tal como o descreveu o cientista Saint-Hilaire que passou por aqui por várias cidades do nosso Rio Grande e que nos deixou a descrição, em legítimo francês e depois de maneira erudita e literária pelo escritor Simões Lopes Neto:
"Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente, martirizado pelos filhos do patrão. Quando anoitece, o sono o domina, e quando não há ninguém na sala, põe-se de joelhos para poder dormir; não é esta casa a única onde há este desumano hábito de se ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se, quando necessário". (Adroaldo Mesquita da Costa. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: ERUS/Martins Livreiro, 1987, p. 86-87)
Ontem, como epicentro da maldade, um patrão de estância e hoje, na cidade de Três Passos, um pai-patrão e uma madrasta. Ontem um Negrinho Santo que sequer nome tinha, um símbolo para todos os meninos abandonados do meio rural. Hoje, um Menino santo, de nome Bernardo, segundo a certidão de nascimento e a certidão de batismo. O antigo, menino de fé e devoto de Maria que invocava como “a Madrinha do que não tem madrinha”. Hoje, outro menino de nome Bernardo, com sede de amor, nunca se cansando de pessoas e famílias que lhe matassem a sede de amar e ser amado.
Em tempos de papa Francisco, depois de um rigoroso inverno retorna a primavera na Igreja. É chegada a hora e a vez da retomada do Concílio Vaticano II, e do modelo Ameríndio de Igreja da Libertação.
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O menino Bernardo Boldrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU