Por: Cesar Sanson | 22 Abril 2014
"É na luta dos pobres, do 99%, que aconteceu a ressurreição dos corpos, bem na frente da Catedral metropolitana. Ajudada pela Pastoral das Favelas que corajosamente se manteve aberta, a Igreja acabou abrindo-se, mesmo que de maneira tardia e perdendo uma oportunidade (um Kayros) incrível de dar às palavras de Francisco um terreno real de ação". O comentário é de Giuseppe Cocco, sociólogo e professor da UFRJ, em artigo publicado pelo sítio uninomade, 21-04-2014.
Eis o artigo.
Sábado, 19 de abril, durante a vigília da ressurreição de Cristo, a TV estatal italiana passava um documentário dedicado ao papa Francisco. Nele, o cardeal Humes (de São Paulo) conta que, embora a contagem ainda não tivesse terminado, no momento em que o cardeal Bergoglio já reunia os dois terços dos votos necessários, ele lhe disse: “não esqueça dos pobres”. “Falei isso sem pensar”, diz Hummes, “quem falou por mim foi o Espírito Santo”. O papa confirma que essa foi a inspiração: “Não esquecer dos pobres! Foi por isso que escolhi Francisco, Francisco de Assis, o amigo dos pobres”.
No mesmo programa, o papa aparece discursando na majestosa e modernista Sala Nervi. Um edifício cuja arquitetura lembra de alguma maneira a arquitetura da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro. Com seu jeito é bonachão, papa Francisco critica duramente a Igreja e os católicos, porque incapazes de renovar a missão pastoral. Ao invés de cuidar dos 99% das “ovelhas” que estão fora, eles apenas calejam a única que está dentro.
Quando Francisco fala dos 99%, está falando dos pobres! É impressionante: o papa usou a mesma metáfora do movimento Occupy: fustigar o poder do 1%.
Pelo visto, o novo cardeal do Rio de Janeiro não assistiu a esse discurso papal e continuou calejando o 1%, passando a mão nas cabeças de Eduardo Paes e Adilson Pires, prefeito e vice-prefeito, sem esquecer do novo governador, Pezão. O mesmo que, na violenta remoção da favela da OI, mostrou logo pra que veio. A total ausência de outros partidos, inclusive do PSOL, deve ter ajudado o novo cardeal a manter-se surdo diante da aparição divina e pascoal do calvário dos sem teto, violentados por um sistema de poder cuja iniquidade ele não deveria estranhar, pois se trata de uma realidade plurissecular, em relação ao que a Igreja evangelizadora deveria fazer grandes esforços de redenção. Os mesmos que fazia o cardeal Bergoglio, quando ele pedia aos padres das pastorais das favelas de Buenos Aires (Villas Miseria) para confessá-lo.
Por que o novo cardeal do Rio perdeu de vista os 99%?
Para começar, dom Orani Tempesta não viu os milhares de pobres que estavam na Favela da Oi. Aliás, foi um esquecimento ecumênico, pois nenhum culto se manifestou em peso, para proteger milhares de pobres em luta por moradia. Da mesma maneira, nenhum partido ou sindicato apareceu. Só mesmo a Pastoral das Favelas se manteve firme.
Depois, quando, no final de uma via Crucis de bombas, cassetetes e violência de todo tipo, os refugiados da Oi foram expulsos também da prefeitura e chegaram na porta da catedral, a Arquidiocese já tinha sido devidamente “doutrinada” pelo consenso racista e bem pensante que se constituiu contra eles: “Luta por moradia no Rio? Só mesmo se alguém for manipulado!” Parecem ter pensado. Que coisa incrível, lutar pela moradia no Rio seria anormal.
Aconteceu, assim, o desencontro: a Páscoa já estava acontecendo na cidade desde a remoção da favela da Oi, quando o êxodo dos pobres se transformou em calvário, para poder enfim celebrar – na persistência da luta – alguma ressurreição dos corpos, os corpos dos pobres! Por alguns dias, a Catedral Metropolitana – assustada – tornou-se explicitamente um sepulcro caiado. Mas que consenso é esse que vigora contra a luta dos refugiados da Oi?
É um consenso racista, contra os pobres e os negros: contra os escravos que saem da senzala. Ele é bem simples. Uma simplicidade lapidada nos sepulcros sem ressurreição onde mulheres e homens pobres são enterrados todos os dias. Ele se enuncia assim, cinicamente: “o problema dos pobres é um problema sem fim, logo não há como resolvê-lo e, se eles porventura não aceitarem essa realidade com o tradicional fatalismo deles esperado, a repressão é única solução”. Esse consenso neo-escravagista é hoje renovado por um Prefeito de extrema direita que tem a tranquilidade para se conceder a licença – graças à participação ativa do PT e do PCdoB – de fazer políticas reacionárias que a direita sozinha não ousava fazer.
É um festival de remoções, internações compulsórias e choques de ordem. Tudo isso alimentado por investimentos públicos bilionários de valorização e especulação imobiliária e fundiária privadas. O prédio da Oi é uma das manifestações perversas dessa gestão e a sua ocupação pelos favelados em êxodo é uma das diferentes formas de luta contra o capitalismo rentista, ou seja contra o capitalismo como ele realmente é hoje. O prédio da Oi ficou vazio ao longo de anos para uma operação de especulação privada que nega duas vezes o interesse público: porque o prédio era estatal, porque há uma urgência social de moradia. Por sua vez, a moradia é um problema secular amplificado hoje pela inflação dos preços promovida – ela também – pelos rios de dinheiro público que estão alimentando operações como a do Porto Maravilha e os megaeventos (Copa e Olimpíadas).
Os refugiados da Oi são os escravos que precisam voltar para a senzala, os leprosos que devem ficar no leprosário: o Campo de onde tinham saído. Quando não são torturados, violentados e assassinados todos os santos dias como os Amarildos e as Cláudias, os pobres são “manipulados”. Dessa vez, sequer o Caetano sentiu a necessidade de falar deles em suas cambalhotas de oportunismos dominicais disfarçados de tropicalismos. Os refugiados não têm nenhum glamour. Na realidade, PT, Igreja e também o PSOL pensam como a Globo e a direita: os pobres que não ficam em seu lugar são invasores.
Mas não é só isso. É pior! No fundo, uma vez a violentíssima repressão dos invasores perpetrada, aqueles que foram para a frente da Prefeitura deveriam ter aceitado qualquer acordo. Qual acordo? Irem todos para os abrigos ! Abrigo não é moradia e talvez seja pior que o olho da rua. Pior, todo mundo finge não saber que a prefeitura está usando rios de dinheiro público para valorizar – sem nenhuma compensação – a região portuária e seu entorno (que envolve Maré, Mangueira, Manguinhos, Alemão), mas está usando o (péssimo) Programa Minha Casa Minha Vida (no Morar Carioca) para remover pobres que já têm casa. E dom Orani Tempesta sabe disso, pois ele foi recentemente fazer uma missa na Vila Autódromo.
As casas da Vila Autódromo não têm nenhuma necessidade de ser demolidas, a não ser para beneficiar os interesses especulativos. Esses que perpetuam a amplificam o déficit habitacional e a crise social, nos forçando a viver dentro de uma guerra civil não declarada. Isso vale para o aluguel social, que está também sendo usado para remover pobres das favelas como a Providência, Indiana, Rocinha, Santa Marta, Cantagalo etc.
Na resistência dos pobres, a ressurreição dos corpos
Mas, apesar de tudo, os pobres resistem e persistem: vivem e lutam! A acampada na frente da Prefeitura era atravessada por danças e cantos. Nenhum mantimento veio de estruturas organizadas (com exceção de alguma coisa vinda do sindicato dos professores, o SEPE, e da Cruz Vermelha), mas sobretudo do amor militante produzido pelas redes espontâneas do movimento de junho, o mesmo que é criminalizado pela Santa Inquisição que junta a Dilma à Veja, Adilson Pires ao Eduardo Paes, Lula ao Pezão.
É na luta dos pobres, do 99%, que aconteceu hoje a ressurreição dos corpos, bem na frente da Catedral metropolitana. Ajudada pela Pastoral das Favelas que corajosamente se manteve aberta, a Igreja acabou abrindo-se, mesmo que de maneira tardia e perdendo uma oportunidade (um Kayros) incrível de dar às palavras de Francisco um terreno real de ação.
Resta saber se Dom Orani aproveitará dessa experiência para colocar a Igreja católica no sincretismo das lutas, em particular da luta por moradia e pela paz, e emancipar-se assim desse 1% que o fez fechar as portas aos refugiados ao invés de fazer do calvário deles o terreno da renovação do amor pelo outro, que deveria ser, desde o princípio, a base da pastoral.
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Francisco de Assis, o cardeal e os refugiados da Oi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU