16 Abril 2014
Em Challapata, uma pequena aldeia do Altiplano que alguns definem como o Wall Street boliviano da quinoa, os corretores não usam gravata, nem óculos de sol de marca, nem abotoaduras de prata para fechar as mangas da camisa. Tampouco existem telas luminosas que mudam os dígitos a cada segundo, nem telefones que tocam sem parar com sons psicodélicos, nem portáteis, nem Ipads, nem qualquer outro indício de modernidade que convide a pensar que este lugar é um importante mercado da América Latina. Aqui, a Bolsa de Valores é uma ampla rua cheia de pedras e caminhões de carga, comerciantes que vendem calculadoras enormes para os que têm dificuldade para enxergar, e postos de comida de rua cobertos com plásticos azul-cobalto. E os que fixam os preços do grão que seduz até os paladares mais sofisticados são homens de meia idade, mãos enrugadas, rostos queimados e calças sujas, e mulheres com anáguas, saias de cores vivas, toucas para o frio e meias grossas de lã que cobrem desde o joelho até o tornozelo.
A reportagem é de Álex Ayala Ugarte, publicada no jornal El País, 13-04-2014.
É sábado, nove e meia da manhã, e a ferramenta mais útil de trabalho é um bastão do tamanho de uma vassoura. Este é o instrumento que identifica os compradores, os que buscam as melhores ofertas, os que tentam enviar a quinoa às empresas exportadoras das cidades de El Ato e Oruro –duas das mais povoadas do país, com uma das economias mais estáveis da região andina. Mas dizem que, há alguns meses, é muito complicado conseguir a matéria-prima barata.
“Tudo depende da oferta e da demanda”, diz Eduardo Calisaya, dentes gigantes, como os de um osso, penteado desgrenhado, sem mechas. São muitos os pedidos da Europa e dos Estados Unidos, e não é temporada de colheita. Por isso a quinoa está cara. Calisaya colhe os grãos, tem 48 anos, e leva mais de 25 dedicados ao negócio de compra-venda, e considera que o boom em relação ao grão solucionou problemas de muitos camponeses e intermediários que até pouco tempo eram bastante humildes: “Agora é mais simples manter a família. Já não temos nossos bolsos vazios”, fala sorrindo.
A alguns metros de onde está Calisaya ocorre neste instante uma transação típica. Um senhor amarra sua vara de madeira em um dos extremos de um grande saco com quinoa branca como o iogurte, que uma senhora roliça oferece na calçada. Depois a encaixa em uma balança e comprova o peso. E logo saca um maço de bilhetes e paga. Fez um bom negócio, comprou o quintal (46kg) a 1.500 bolivianos (cerca de 490 reais). Ontem o quintal dessa mesma quinoa estava em 2.050 (650 reais): tudo um recorde. Mas os agricultores querem se livrar dos restos antes da época da colheita e decidiram depreciá-la. Em 2011, a morte de Steve Jobs, o famoso guru da tecnologia, propiciou uma queda transitória na cotação das ações da Apple. Aqui, uma geada dispara os preços rapidamente, e um bom ano de colheita faz com que os preços caiam.
Lidia Arancibia, vizinha de Challapata, jornalista de uma rádio local, diz que o que estão vivendo é um desvario. “Faz 12 anos, quando estava esperado um filho, com 200 bolivianos (64 reais) me abasteci de quinoa suficiente para aguentar toda a gravidez. Hoje não poderia fazer o mesmo”. Atualmente, com 200 bolivianos ela compraria o suficiente somente para um mês de gravidez: para usar em umas sopas e algum cozido.
Nos disseram que tínhamos que cultivar quinoa e o fizemos, mas vai quase tudo para fora. O que fica para gente?
Alguns classificam a loucura mencionada por Lidia como transitória. E outros pensam que a tendência de alta se sustentará no longo prazo. Para eles, a quinoa é inigualável e única, uma espécie de pedra filosofal do universo agrícola, um produto revolucionário.
Na Bolívia, a palavra revolução está em moda. Fala-se de revolução política e cultural. Fala-se de revolução indígena e energética. E a revolução também tem a ver aqui com o estômago e os sucos gástricos. “Frente à crise alimentar global, nossas comunidades têm várias propostas. Uma delas é a quinoa. Durante 7.000 anos temos melhorado este presente que a Mãe Terra nos deixou, aperfeiçoando seu uso em dietas, remédios e rituais”, disse Evo Morales em 2013, durante seu discurso na sede da ONU em Nova York, em comemoração ao ano internacional deste grão. Alguns meses antes tinha viajado a Orinoca, sua aldeia natal, para plantar quinoa em um pedaço de terra e deixar-se ser fotografado. Na ocasião, enquanto afundava a semente, o presidente que quando criança recolhia as cascas de laranja que caíam dos ônibus para preparar chás com os quais matava a fome, pousava para os flashes emocionado: parecia um garoto que acaba de descobrir o fogo.
A quinoa é um pseudocereal que se adapta aos vales secos e aos húmidos, que se desenvolve inclusive no nível do mar, capaz de aguentar as temperaturas abaixo de zero e calores extremos. Já faz parte do patrimônio de vários países, como Equador, Chile, Colômbia, França, Suécia, Dinamarca e Itália. Mas a mais valorizada, a real, capaz de resistir onde qualquer outra muda dificilmente poderia fincar raízes, gosta de alturas; e disfruta de condições excepcionais (solo vulcânico e planícies semiáridas) nos setores próximos ao Salar de Uyuni, que fica a 393 quilômetros de Challapata.
No ano passado, na comunidade rural de Frasquia, a 115 quilômetros da cidade de La Paz e a mais de 4.000 metros de altitude, Carmelo Flores, um ancião de mãos enrugadas e 123 anos –provavelmente o mais velho do planeta–, revelou à imprensa o segredo de sua longevidade e pareceu até não poder mais em portais na Internet e sites de notícias. Sua fórmula mágica –declarou– consiste em beber água de uma região com neve próxima à sua casa, molhar o corpo com álcool que guarda em uma garrafa com víboras quando algo lhe dói e consumir feijão, batatas, cevada e quinoa em abundância.
Hoje é quinta-feira e, em La Paz, Lucio Patón e Josefina Morales dizem agora que eles – como Carmelo– procuram sempre incluir quinoa em suas dietas. Compram o cereal por arroba (11,5 kilos) cada vez que podem e se esforçam para que dure vários meses. Juntos, somam quase 180 anos e garantem que sua fortaleza depende em grade medida a este grão que em outras latitudes se emprega até para controlar a vertigem de galinhas e do gado. “A quinoa é boa para tudo”, comenta Lucio, que com sua idade –tem quase 90– ainda é capaz de carregar quilos e quilos nas costas como se não fosse nada. “Te faz crescer”, acrescenta Josefina, ancorada em uma cadeira. “Talvez por isso, o que temos permaneceu conosco por muitíssimos anos. Meu pai foi o que me ensinou a lavá-la bem e a cozinhá-la. Ele gostava muito. Morreu aos 105 anos”.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, a quinoa, considerada pelos incas como a mãe de todas as sementes, é usada para tratar mais de 22 doenças; tem alto conteúdo de vitaminas e minerais como ferro, fósforo, potássio, cálcio, zinco e magnésio. É perfeita para os diabéticos por seu baixo índice glicêmico. Para os celíacos também, porque seus ácidos graxos não contêm glúten. E suas altas porcentagens de fibras fazem dela o mecanismo ideal para eliminar toxinas e outros resíduos que são prejudiciais ao organismo. O pseudocereal, que pertence à subfamília Chenopodioideae das amarantáceas, está sendo estudado pela NASA como uma alternativa para as viagens de astronautas; e forma parte das preferências de cineastas como David Lynch, modelos como Kate Moss, atrizes como Gwyneth Paltrow e Jennifer Aniston e tenores como o peruano que não sabe assobiar: Juan Diego Flórez. Todos eles são novos embaixadores kitsch do que foi batizado pelos nutricionistas como o “supergrão” ou “grão de ouro”.
“Não existe nenhum outro com tantas virtudes”, diz Rita del Solar, enquanto segura uma embalagem de comida pronta para que aqueles que queiram preparar um hambúrguer de quinoa sem muito esforço. “Lembro-me de ter visto mães que não podiam amamentar porque não tinham suficiente leite, engordando seus bebês com a água que usavam para cozinhar os grãos. E isso me parece algo maravilhoso. Além disso, trata-se de uma planta extremamente atraente. Suas três variedades mais conhecidas, a branca, a vermelha e a negra combinam bastante bem com qualquer prato. E são muito agradáveis aos olhos”.
Del Solar, considerada a dama das receitas bolivianas, tem mais de uma dezena de livros publicados. É uma senhora que costuma vestir ternos elegantes. Às vezes usa umas lentes de haste que lhe dão aspecto de vovozinha simpática. E se orgulha de ter preparado quinoa para a rainha Sofia. “Quando veio para cá, pedia a todo o momento porque gosta muito e é vegetariana. Não entendo porque os espanhóis focaram-se somente nas batatas durante a conquista e não enxergaram a quinoa e suas qualidades. A batata é muito volumosa e pouco prática; a quinoa, todo o contrário. Se a houvessem descoberto antes, seguramente teriam evitado o passado de muita fome.”
Hoje o complemento ideal para os cosmonautas é um artigo onipresente nas lojas de comércio que segue padrões éticos, em supermercados gigantescos como Carrefour e em grandes redes de comida saudável. É possível encontrá-la em infinitas formas: como grão, farinha, como pipoca, como drágea. Vive seu melhor momento: chegou aos confins de Israel e Ucrânia, e é promovida em outros países como Coreia do Sul e China. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Rural e Terras da Bolívia, este país, o maior exportador internacional de quinoa– à frente do Peru e Estados Unidos– produziu ano passado 95.000 toneladas que totalizaram 153 milhões de dólares (cerca de 300 milhões de reais), quase 50 vezes mais que há uma década. Seu destino principal foi a África do Norte; depois, Europa.
Dez anos atrás, o panorama era diferente. Naquela época, ainda havia pessoas que se referiam à quinoa com desprezo: a ela e aos que a consumiam. "Isso é para os pobres, para os índios", era a frase que mais se repetia. "Agora, a mentalidade é outra", assegura Juan Pablo Seleme, engenheiro químico e dono da empresa Quinua Foods, de El Alto. Atualmente, o grão é apresentado como sobremesa, como aperitivo, entradas e como um lanche, em macarrão e biscoitos, com ovos, chocolate e até com sushi; seu potencial é equiparável ao do leite; foi adotada por alguns dos chefes mais influentes das passarelas culinárias, como o catalão Ferran Adrià, o francês Alain Ducasse e o também canonizado Gastón Acurio, peruano; e é utilizada normalmente em quantidades mínimas.
"Para mim, é uma benção", disse Seleme. "E não somente pelas suas características, mas porque também traz progressos. Antes, no Altiplano, a maioria das casas era feita de barro; agora, de tijolo. Devido ao capital que gera, a eletricidade chegou a muitos locais, mais crianças vão à escola e há novos caminhos."
Em Jirira, um povoado boliviano nas margens do vulcão Tunupa, onde os celulares não vibram porque não há sinal, e onde o silêncio é quase monástico, Guadalupe Ramos de Nina, ex-dona de casa, ex-mulher itinerante e órfão desde muito jovem, orgulha-se de ter construído um albergue para mochileiros com dinheiro oriundo das quinoas. "Elas nos deram tudo", diz. "Somos muito gratos". Histórias de sucesso como a sua são reproduzidas ao redor da Bolívia. Em Challapata, José Luis Willca, de 39 anos, conta que começou com uma mochila, sua mulher e um recém-nascido; antes morava em uma casa precária e agora, com os benefícios que recebe pela venda de máquinas de colheita, começou a construir o lar que deseja. Em Caracollo, outro importante centro de colheita, Severino Arias sonha em voz alta: "Temos um presidente que colhia coca. Por que não sonhar?"
Walter Magne, em Oruro, é mais cético e considera que a cadeira produtiva foi distorcida. "Vieram as ONGs e nos disseram que tínhamos que cultivar mais quinoa e a cultivamos, mas quase tudo vai embora. O que resta para nós?", pergunta. Magne, ex-embaixador boliviano na Alemanha, um homem fino, com dicção lenta e olhos pequenos, dirige uma café rústico com um menu 100% caseiro, no qual o mais estranho é uma cerveja elaborado a partir do "grão dourado". Ele diz que muitos campos estão se desgastando, que apenas a ganância importa, e que poucos realmente se interessam com a relação homem-natureza.
Em La Paz, Joan Carbó Solé, de 25 anos, um dos responsáveis pelo laboratório experimental do restaurante Gustu - espaço pioneiro que administra exclusivamente ingredientes produzidos na Bolívia -, mostra-se entusiasmado com as propriedades da quinoa, mas confessa que, como lanchonete, não é algo que lhe cative. "Por dentro, é espetacular", diz. "Temos que reconhecer: segundo os estudos, contém oito aminoácidos essenciais e é rica em proteína. Há mil anos, no Altiplano, mais que se alimentar, as pessoas se nutriam, e isso era fantástico. Seu sabor, no entanto, não representa para mim um estalo nos sentidos, como outras coisas que já provei." Entre elas, uma flor doce como melancia e um fungo de aspecto tenebroso que parece explodir quando é colocado na boca.
Em Gustu, a quinoa é espalhada sobre pães elaborados nas pastelarias e também serve de acompanhamento. Mas ainda são vistas com certa cautela. "Dizem que é o super-herói desse século, e seria genial que garantisse a segurança alimentar mundial", comenta Joan. "Mas acredito que não é isso que está acontecendo. Muitos a veem como algo a mais, como o petróleo."
Calcula-se que apenas 10% do que se produz na Bolívia é voltado para o mercado interno. E em Challapata, Trifón Choque, que auxiliou uma infinidade de programas de cooperação e desenvolvimento, fala de uma espécie de maldição da quinoa. "Por ambição, o equilíbrio foi rompido. As pessoas começaram a lutar pelas terras para cultivar e só se dá importância ao dinheiro. Pergunte quantas pessoas a preparam e serão poucas, apenas quando chega algum turista."
É assim que parece. Na hora do almoço, espera-se o paraíso boliviano da quinoa, mas os locais preferidos de muitos moradores são os que vendem comida como frango grelhado, carnes, coca-cola, fanta e batatas fritas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Quinoa: a revolução do grão de ouro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU