30 Novembro 2019
"O encontro de teólogos na Faculdade Franciscana de Petrópolis, no Brasil, em 1964, tinha entre seus objetivos o exame, do ponto de vista teológico, da problemática da Igreja latino-americana. Entre os pioneiros que dele participaram estavam o peruano Gustavo Gutiérrez, o uruguaio Juan Luis Segundo e o já lembrado Lucio Gera", escreveu Juan Carlos Scannone, jesuíta argentino, filósofo e teólogo, falecido no último dia 27-11-2019
Publicamos aqui uma parte da conferência proferida no dia 28 de março, em Roma, na Pontifícia Universidade Gregoriana, pelo teólogo jesuíta Juan Carlos Scannone no congresso "As raízes do Papa Francisco. O Concílio Vaticano II na América Latina".
O artigo foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 29-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em memória de Juan Carlos Scannone, reproduzimos o artigo publicado aqui no IHU, em 2014.
Embora possamos falar de uma teologia argentina antes do Concílio Vaticano II, não vou focar a minha atenção nela, mas naquela pós-conciliar. Durante o concílio, dois fatos importantes aconteceram: o encontro em Roma, para aquela ocasião, de especialistas conciliares de diferentes países da América Latina e o contato mútuo (entre eles estava o argentino Lucio Gera); o encontro de teólogos - não menos importantes que aqueles especialistas - na Faculdade Franciscana de Petrópolis, no Brasil, em 1964, que tinha entre seus objetivos o exame do ponto de vista teológico da problemática da Igreja latino-americana. Entre os pioneiros que participaram, estavam o peruano Gustavo Gutiérrez, o uruguaio Juan Luis Segundo e o mencionado Lucio Gera.
Pois bem, já em 1968, antes de Medellín, Gutiérrez havia proferido uma palestra intitulada "Rumo a uma teologia da libertação", dando assim um nome à reflexão teológica então emergente no clima do concílio, aplicado à nossa América. Aquela linguagem e aquela perspectiva foram aceitas tanto na Conferência de Medellín (1968) quanto no pós-Medellín, também na Argentina, especialmente pelo próprio Gera - especialista naquela conferência - e pelos teólogos da Coepal (Comissão Episcopal para a Pastoral), bem como pelo Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo, nascido em resposta ao Manifesto dos Bispos do Terceiro Mundo (15 de agosto de 1967). A Conferência Episcopal Argentina havia confiado à Coepal, no pós-concílio (1966), a tarefa de elaborar um plano pastoral nacional de acordo com o espírito do Vaticano II. Era composto por vários bispos (monsenhor Marengo, Zaspe e Angelelli), teólogos, pastores, religiosos e religiosas, entre os quais Lucio Gera, Rafael Tello, ambos professores da Faculdade de Teologia de Buenos Aires, os padres diocesanos Justino O'Farrel (anteriormente da congregação de Dom Orione), Guillermo Sáenz (do movimento rural de ação católica), Gerardo Farrel (especialista em doutrina social da Igreja), Juan Bautista Capellaro (do movimento Mundo Mejor), os jesuítas Fernando Boasso e Alberto Sily (ambos do Cias, Centro de Investigação e Ação Social), o estudioso bíblico Mateo Perdía, as Irmãs Aída López, Laura Renard e Esther Sastre, e ouros ainda.
Precisamente essa comissão foi o âmbito em que nasceu a teologia argentina do povo, cuja marca já era visível na Declaração do episcopado argentino em San Miguel (1969) - especialmente no documento VI, sobre a pastoral popular - que aplicava as diretrizes de Medellín à Argentina.
Embora a Coepal tenha deixado de existir no início de 1973, vários de seus membros continuaram se reunindo e se renovando como grupo de reflexão teológica sob a liderança intelectual de Gera. Este último também participou como especialista no encontro de Puebla, foi membro do grupo teológico-pastoral da Celam, exerceu uma forte influência teológica e pessoal no Movimento do Terceiro Mundo e, posteriormente, foi membro da Comissão Teológica Internacional. Sua teologia foi mais oral do que escrita, mas de qualquer forma ele nos deixou textos importantes e também muitas de suas intervenções orais foram oportunamente registradas e depois transcritas.
O contexto político argentino da época incluía o governo militar de Onganía (uma ditadura, mas não tão cruel quanto a de Videla), a proscrição do peronismo até sua queda em 1955, a repressão do movimento operário peronista, o nascimento da futura guerrilha e um fenômeno novo, provavelmente devido às circunstâncias já mencionadas: muitos intelectuais, professores e estudantes universitários progressistas apoiaram na época o peronismo como uma resistência popular às forças armadas e como um movimento de protesto social, algo que não havia acontecido durante as presidências de Perón.
Assim nasceram nas universidades de Buenos Aires as chamadas cátedras nacionais de sociologia, com figuras de destaque como Justino O'Farrell, Gonzalo Cárdenas, Alcira Argumedo, José Pablo Feinmann e a filósofa Amelia Podetti, entre outros. O primeiro, Justino O'Farrell, foi de fato o elo entre essas cátedras e a Coepal, fazendo parte de ambas as instituições e desempenhando um papel importante nas duas. Foi assim que, distanciando-se do liberalismo e do marxismo, uma e outra encontraram sua própria definição conceitual na história latino-americana e argentina (oral e escrita) com categorias como "povo" e "anti-povo", "povos" e "impérios", "cultura popular", "religiosidade popular" e assim por diante.
No caso de Lucio Gera e a Coepal, tratou-se do Povo de Deus - uma categoria bíblica privilegiada do concílio para designar a Igreja - e dos povos, especialmente o argentino. Para ambos, o que estava em jogo não era apenas o surgimento do laicato na Igreja, mas também a inserção da Igreja na vivência histórica dos povos, como sujeitos da história e da cultura, receptores da evangelização e, se já evangelizados, também evangelizadores. Acredito que foram influenciados, como de resto a teologia latino-americana da época, pela "teoria da dependência", mas esta foi entendida não tanto no âmbito econômico quanto no da dominação política (imperial), que inclui a econômica, enquadrando tanto na linha evangélica de libertação integral do pecado, como também de suas consequências sociais e estruturais.
A íntegra da conferência, em espanhol, pode ser vista abaixo:
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“A teologia do povo na Argentina: tudo começou em Petrópolis”. Artigo de Juan Carlos Scannone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU