20 Março 2014
Um ano vivido franciscanamente. Um ano que poderíamos definir como "rico em jogos de cena", sem medo de escorregar no ficcional. Porque, com efeito, este ano transcorrido desde o dia 13 de março de 2013, quando o conclave elegeu a papa Jorge Mario Bergoglio, não teve nada de previsível. Desde o primeiro momento em que o novo pontífice se apresentou aos fiéis, assomando-se à sacada de São Pedro, definindo -se como "bispo de Roma" e pedindo a bênção sobre a sua cabeça, quase como uma investidura, por parte do povo.
A reportagem é da revista Jesus, de março de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sim, o Papa Francisco representou nesse ano um vento de renovação radical do cristianismo. Revolucionou formas e estilos do pontificado, adotando um modo de exercer o mais alto ministério hierárquico da Igreja Católica francamente inédito na história moderna.
E se a forma, nesses casos, também é substância, não se pode dizer que Bergoglio esteja se limitando a isso, como se se tratasse de uma mera operação cosmética. O sucessor de Bento XVI, de fato, começou a fazer substanciais reformas da Igreja. Algumas trarão resultados a curto prazo (o IOR e a gestão financeira); outros, a médio prazo (o Sínodo dos Bispos); e outros ainda a longo prazo (a reforma global da Cúria Romana e do governo da Igreja, a colegialidade, o papel dos leigos e da mulher...).
Certamente, um ano ainda é pouco para avaliar o fôlego de um pontificado. Mas, mesmo assim, representa uma significativa reviravolta. E permite um primeiro balanço, embora provisório, mas já significativo.
Para oferecer aos leitores um quadro interpretativo e chaves de leitura, convidamos à redação alguns atentos observadores deste pontificado. Trata-se do padre Antonio Spadaro, jesuíta, diretor da revista La Civiltà Cattolica e autor da longa entrevista com o papa publicada em setembro passado; Maria Cristina Bartolomei, teóloga, articulista da revista Jesus e professora de filosofia da religião na Universidade Estatal de Milão; o padre Maurilio Guasco, historiador da Igreja e do mundo católico contemporâneo, professor da Universidade do Piemonte Oriental; o pastor e teólogo valdense Paolo Ricca; e, por fim, a teóloga Serena Noceti, professora de eclesiologia e vice-presidente da ATI (Associação dos Teólogos Italianos).
Eis o debate.
Há um ano, no dia 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI anunciava surpreendentemente a sua renúncia, pondo fim assim a um pontificado conturbado por tensões, revelações e escândalos que tinham tocado o próprio apartamento papal. Depois de menos de um mês, no dia 13 de março, era eleito Jorge Mario Bergoglio, o primeiro papa a assumir o desafiador nome de Francisco. Na sua opinião, o que aconteceu naquelas semanas fatídicas? O que levou ao sólio de Pedro o cardeal arcebispo de Buenos Aires?
Maurilio Guasco – Acima de tudo, quero contar uma história. Algum tempo atrás, um velho amigo comunista me disse: "Eu tenho um problema: todos os domingos, às quinze para o meio-dia, em qualquer parte em que eu esteja, eu corro para casa, porque não quero perder o Ângelus do papa". Ele nunca tinha dito uma coisa dessas! Esse pequeno relato, porém, explica bem a novidade radical que o Papa Francisco representa hoje aos olhos de crentes e não crentes. Mas como se chegou à eleição de Jorge Mario Bergoglio? Devemos começar, justamente, da renúncia de Bento XVI, que surpreendeu a todos e que levou a um conclave totalmente imprevisto. Ratzinger é um teólogo e, há já alguns anos, dera-se conta da sua impossibilidade de governar a Igreja, talvez também por razões de saúde.
Ao lado disso, é preciso lembrar que, no conclave anterior, o próprio Bergoglio havia recebido um certo número de votos. Os cardeais que o elegeram há um ano, principalmente europeus e norte-americanos, fizeram isso considerando que o estilo de Ratzinger, que indubitavelmente tinha uma lógica própria, não funcionara ao teste dos fatos. O Papa Francisco muitas vezes disse que tem uma grande veneração por Ratzinger, e eu acho que isso é verdade. No entanto, se analisarmos os aspectos individuais desse pontificado, damo-nos conta de que, em comparação com o anterior, há uma notável diferença na escolha dos homens, na orientação, na retomada de temas que haviam sido esquecidos.
Cito apenas duas questões, uma de substância teológica e uma de estilo. O Papa Francisco disse que queria ser, em primeiro lugar, o bispo de Roma. Ele retomou explicitamente a ideia do Papa João XXIII, que tinha sido o primeiro a declarar isso nos tempos modernos. Além disso, quando Bergoglio se apresentou aos fiéis na Praça de São Pedro dizendo simplesmente: "Boa noite", ele deixou todos estupefatos. O nosso espanto é lógico. Mas que tipo de Igreja construímos se um homem normal nos surpreende? Esses dois elementos – o fato de ele ter se apresentado como bispo de Roma e o seu incrível modo de ser uma pessoa normal – devem nos fazer refletir sobre o tipo de Igreja que construímos. As pessoas notaram todas as novidades imediatamente e as acolheram com grande entusiasmo.
Serena Noceti – Nos últimos sete ou oito anos, vivemos uma fase eclesial muito complexa. A meu ver, são dois os pontos de referência nos quais se demonstrou frágil a escolha pastoral de fundo do pontificado de Ratzinger. O primeiro é o confronto com o contexto pós-moderno e com os seus ritmos acelerados de mudança: mudança que, tendo o papa apontado muito no reforço das estruturas eclesiásticas, não conseguiu gerir depois. O segundo é o processo de recepção do Vaticano II: o fato de ter se dirigido a uma hermenêutica magisterial fundamentada em alguns assuntos "clássicos" da teologia do professor Ratzinger mostrou todos os seus limites.
O fato de ter apontado para a Igreja universal, para a Cúria, para uma doutrina da verdade como ponto de referência dos processos formativos não erodiu um dos aspectos-chave do modelo tridentino: processos comunicativos unidirecionais, do centro para a periferia, do clero aos leigos, do papa aos outros. Parece-me que essa é a questão: a eclesiologia tridentina permaneceu nos últimos 15 anos como base de referência, como esquema mental dominante. Na prática, apontou-se para aspectos sobre os quais, ao invés, o Concílio Vaticano II tinha tomado uma posição totalmente diferente: sobre a autoridade como princípio constitutivo, não sobre os processos, mas sobre as estruturas, sobre uma eclesiologia fortemente universalista, sobre uma concepção sacral e cristológico-ontológica do ministério ordenado.
A "estratégia" ratzingeriana do pontificado de Bento XVI, portanto, se revelou frágil, incapaz de responder aos desafios do tempo e de conjugar verdade e história. Porém, justamente no momento da renúncia ao pontificado realizada por Bento XVI, ele marcou e relançou um conceito importante: o fato de que é possível a mudança daquilo que, a respeito da Igreja, era considerado absolutamente inamovível. Acima de tudo, portanto, a forma do papado. Um elemento muito interessante da primeira saída de Francisco foi, aliás, a desconstrução e a reconstrução simbólica da função papal e do papel e da sujeitualidade eclesial. Tem-se a impressão de um deslocamento da ênfase do nó eclesial para o do Evangelho, que, no fundo, também era, nas intenções, o tema do Concílio Vaticano II: penso, por exemplo, no discurso de abertura de João XXIII e no discurso da segunda sessão proferido por Paulo VI. O que está em jogo, a meu ver, portanto, é a passagem do modelo tridentino de Igreja, que ainda trazemos inscrito nas nossas estruturas mentais e eclesiais, a um novo modelo que, no fundo, é a mens ultima do Vaticano II nas suas intuições portadoras: nova forma de ministério, sujeitualidade dos leigos e presença no mundo.
Antonio Spadaro – Bento XVI teve, sim, a percepção da sua fraqueza física, mas não é esse o verdadeiro motivo profundo pelo qual ele deixou. O elemento principal que ele trouxe como sustento dessa sua decisão foi a percepção das rápidas mudanças em curso que requerem, em sua opinião, vigor, tanto do corpo quanto da alma. A minha interpretação da renúncia de Bento XVI, em suma, é de tipo espiritual: o Papa Ratzinger foi o primeiro a se dar conta de que o Espírito estava soprando em uma certa direção. Daí a sua reflexão em torno da ideia de sair e, por fim, a decisão.
É preciso lembrar que ele havia se encontrado com o primaz anglicano Rowan Williams pouco tempo antes, e este tinha lhe pré-anunciado a sua renúncia. E também é possível que tenha sido um encontro que o fez refletir, dada também uma boa sintonia entre os dois. É uma hipótese pura, obviamente. É preciso notar que, no lugar de Rowan Williams, entrou o arcebispo Welby, que em muitos aspectos tem um estilo próximo ao do Papa Francisco. São figuras, Rowan Williams e Bento XVI de um lado, e Welby e Francisco de outro, que podem ser aproximadas de algum modo.
Portanto, renúncia, novo conclave e eleição do Papa Francisco não são tanto questões que podem ser remontadas a alquimias internas, mas sim a um movimento, uma moção espiritual do nosso tempo. Além disso, impressiona-me o fato de que o Papa Francisco é um mistério para si mesmo, como ele mesmo me disse. O Bergoglio que nós vemos não é, de fato, exatamente o de Buenos Aires. Neste verão [europeu], eu estive na Argentina e encontrei com coirmãos, aos quais perguntei se conheciam o Papa Francisco. Um deles me respondeu: "Eu conheço Jorge Mario Bergoglio, mas não conheço o Papa Francisco". Ele também, portanto, entrou misteriosamente nesse processo de mudança que o transformou. Ou, melhor: fez com que ele "florescesse", mais do que simplesmente "mudasse".
Especificamente: a sua visão da realidade e a sua dimensão pastoral de governo – que são, a meu ver, os motivos que levaram à sua eleição – não mudaram, mas a sua figura, a sua capacidade comunicativa, a sua capacidade de relação, aquilo que muitos chamam de estilo, mas que a meu ver é o próprio conteúdo, floresceu. O exemplo mais evidente que ele me descreveu foi o do Rio: "Eu estou acostumado a falar ou face a face ou a grupos de pessoas", dizia-me, "mas a ideia de me encontrar diante de milhões de pessoas era algo fora do mundo". O fato de que tenha se sentido tão à vontade, isso também é algo de misterioso.
Enquanto João Paulo II, também pela sua profunda formação ao teatro, mantinha o olhar sempre alto e fazia grandes gestos de bênção, o Papa Francisco, ao invés, não sabe manter a relação com a massa, tem relação com os indivíduos, é tocado pelas situações individuais. E ainda: todos acreditam que o Papa Francisco tem um projeto. A meu ver, ao invés, ele tem, sim, uma ideia precisa do ponto de partida (até porque ele não vive em uma bolha filtrada, está em Santa Marta por isso, vive em contato com a realidade), mas o seu modo de proceder é tipicamente jesuítico: dá um passo, depois rezar sobre o que realizou, discute com os outros e, então, avança. Caminhando, abre-se o caminho. O seu processo é real, no qual ele sabe de onde parte, mas entende que deve andar apenas durante o caminho.
Maria Cristina Bartolomei – A meu ver, o primeiro desafio ao qual se deve responder hoje é a distância entre a cultura ou, melhor, as culturas e a Igreja Católica. O cardeal Martini dizia: "A Igreja está 200 anos atrasada!". Eu que vivo em uma faculdade filosófica estatal, portanto laica, meço essa distância a cada dia. O segundo desafio é a unidade da Igreja. E o terceiro, ligado em parte ao primeiro, é a relação entre poder religioso e poder político. Sobre esses três desafios, a resposta de fundo que vem desse pontificado marca, em relação ao anterior, uma reviravolta claríssima. João Paulo II disse que o ministério petrino é um obstáculo para a unidade da Igreja. Então, o gesto mais alto de magistério petrino que Bento XVI fez, foi a capacidade de renunciar. Porque, ao fazer isso, mostrou que o ministério de Pedro não se identifica com a pessoa. E era preciso toda a formidável preparação teológica de Ratzinger para fazer isso como papa. Nesse aspecto, vê-se a continuidade, paradoxal se quisermos, entre a renúncia de um e o modo de exercer o ministério de outro.
Sobre o porquê Jorge Mario Bergoglio foi eleito, é claro que a posição teológica do cardeal de Buenos Aires não era a de um avançado teólogo da libertação: ele sempre foi considerado uma pessoa absolutamente confiável por aqueles que estavam na linha da continuidade. No entanto, com respeito à relação entre verdade e história, a descontinuidade com Ratzinger é fundamental. Compreende-se bem a visão de Bento XVI no discurso proferido por ele em Regensburg: Ratzinger concebe uma razão que chega à verdade através dos seus próprios caminhos, e infelizmente se trata de uma verdade "julgante". Ao contrário, a análise que foi feita do vocabulário do Papa Francisco demonstra que os termos "juízo" e "condenação" não existem para ele. Ao invés, existe a locução "todos nós a caminho para".
Então, quem é realmente Jorge Mario Bergoglio?
Antonio Spadaro – Talvez, o Papa Francisco esteja surpreendendo alguns dos seus eleitores, embora eu não acredite, de fato, que os cardeais que o elegeram o fizeram ingenuamente. Substancialmente, ele foi eleito por duas características fundamentais: a sua dimensão pastoral e a de governo. Como arcebispo de Buenos Aires, de fato, ele deu provas de grande capacidade pastoral e de extrema proximidade com o povo. E os purpurados em Roma buscavam justamente isso: a passagem de uma dimensão teológica para uma mais pastoral.
Quanto à pergunta sobre quem é Bergoglio, eu também lhe fiz essa pergunta, mesmo não a tendo previsto na listinha da entrevista. Ele respondeu definindo-se como "um pecador", em linha com o que está escrito no primeiro decreto da Congregação Geral dos jesuítas de 1974. Mas é preciso enfatizar um aspecto: o Papa Francisco não repetiu uma frase feita, referindo-se a uma definição literária. Ao invés, enfatizou: "Para mim, é realmente assim". Um pastor evangélico amigo seu disse uma vez que, quando se encontra com Bergoglio, tem-se a impressão de ver alguém que recém-falou com Deus Pai.
O Papa Francisco, com efeito, é uma pessoa de grande serenidade e paz interior, mesmo estando bem consciente das reações e das fortes oposições que as suas ideias suscitam dentro da Igreja. Na nossa conversa, ele me repetiu isso ao menos três vezes. Para ele, essas oposições são óbvias, claras, evidentes. Ele sabe o que esperar. Mesmo assim, demonstra uma paz e uma liberdade invejáveis. Ele está perfeitamente consciente da história, mas, ao mesmo tempo, é profundamente confiante em Deus e, portanto, livre. Ele é um homem resolvido.
Paolo Ricca – O que mais me impressionou até agora desse pontificado é justamente essa liberdade, surpreendente para o papado, ao menos como o conhecemos desde a Contrarreforma, isto é, uma função tão rigidamente fixada e caracterizada por uma escalada progressiva no plano dogmático, a ponto de criar quase uma religião "papal", ligada à pessoa do pontífice. Uma religião, esta, que foi construída pelo próprio papado ou talvez pela Cúria, sobre uma figura semidivina, como ocorre nas grandes ditaduras, que têm o culto à personalidade do líder.
Na Igreja Católica, porém, o culto não é o da personalidade, mas sim da função. João Paulo II e Bento XVI também se colocaram nessa linha. Ao invés, a novidade deste papa é o de ter deixado de lado tal liturgia, demonstrando, assim, uma grandíssima e misteriosíssima liberdade em relação ao próprio papel, a capacidade de reinventá-la ou de remeter-se a modelos papais absolutamente remotos, que não têm uma comparação na experiência dos últimos séculos. Estou confiante, porque, quando no trono de Pedro há um homem livre, podem acontecer muitas coisas, porque a liberdade é criadora, é fecunda, é capaz de invenção.
Maurilio Guasco – O tipo de culto ao qual Ricca faz referência foi criado por Pio IX quando proclamou: "Deus elevou o pontífice e o transformou em um ser quase semelhante a Deus". Pio XII não retoma propriamente as mesmas palavras, mas o seu modo de se portar, de rezar, assim como também se entrevê no filme Pastor angelicus, que o retrata em uma aura mística, é a institucionalização dessa figura: os fiéis viam o filme e, no fim, iam rezar ao papa, considerado o substituto de Deus. Tudo teve origem no fim do século XIX. Com a tomada de Roma e o fim do poder temporal, chega-se a exasperar esse aspecto: os anos de Pio IX são aqueles em que realmente há uma forma de sacralização da figura do papa. Um dos aspectos mais interessantes da renúncia de Bento XVI é a inversão implícita dessa rota, que se concretiza com a passagem da pessoa sacra à pessoa normal. De fato, se o papa é uma figura sagrada, não pode renunciar. Mas, no momento em que o pontífice é considerado uma pessoa normal a serviço da Igreja, quando não é mais capaz de desempenhar tal serviço, é normal que o deixe para outro. Porém, na cultura eclesiástica e na práxis da Cúria Romana, absolutamente não era um comportamento óbvio.
Serena Noceti – Um dos eixos do Vaticano II é a recuperação da sujeitualidade de todos aqueles que são Igreja. Sob esse aspecto, parece-me que, entre os dois pontificados, há uma mudança substancial, porque hoje se olha para a Igreja não imediatamente do ponto de vista da estrutura, mas sim dos sujeitos. Nas suas homilias, por exemplo, o Papa Francisco reitera muitas vezes o conceito de povo de Deus, de pessoas. A passagem, nesse caso, é o da teologia fundamental à teologia prática. E a formulação de uma verdadeira "teologia do rosto", com base na qual a Igreja é feita de sujeito e onde há muito espaço para o papel da consciência e para o esforço da pesquisa. Na entrevista à Civiltà Cattolica, o papa reafirma um conceito: "Eu não sei tudo, eu aprendo com os erros". No fundo, o que deu tanto trabalho nos últimos 50 anos ou, melhor, nos últimos séculos foi justamente a atitude de uma Igreja que pretende ter sempre uma resposta pronta, já pré-codificada, estruturada e sistematizada. Quem é Bergoglio, portanto? Na minha opinião, é um filho do Concílio, no sentido mais imediato dessa palavra: alguém que assimilou as intuições importantes do Vaticano II.
Antonio Spadaro – Quando eu encontrei o Papa Francisco, fiquei impressionado com a percepção da sua autoridade. Sente-se o peso específico do seu ministério, mas não se percebe nenhuma distância. Essa atitude se baseia em dois elementos. O primeiro é constituído pela sua raiz inaciana: durante a entrevista, ele mesmo me exortou: "Se eu disser algo que você não entende ou não aceite, me diga". Ele me acolheu com aquele estilo de coirmão típico da nossa Ordem, que ele utiliza normalmente. O segundo elemento é a experiência que ele viveu, isto é, o trato relacional da Igreja latino-americana, que é de imediaticidade e de absoluto familiaridade.
Maria Cristina Bartolomei – Há muitos que evidenciam que Bergoglio não fala como papa, mas como um homem entre os homens. Francisco é um homem extremamente cheio de autoridade justamente porque abandonou as insígnias da autoridade absoluta, e é um homem livre: não porque tenha se libertado de si mesmo, mas – ele diz isso claramente – é algo que lhe foi dada por Graça, que corre risco todos os dias, porque ele também é um pecador. Quando ele diz "rezem por mim", não é uma forma de dizer, ele o pede realmente. Assim, a anulação das distâncias é em relação à condição humana, que é a de sermos pecadores.
Francisco insistiu em uma expressão original e brilhante, que se tornou o código do seu pontificado: a Igreja é um hospital de campanha. O que isso significa ?
Paolo Ricca – Há duas mensagens nessa imagem. A primeira é que a humanidade está ferida, isto é, que a Igreja está no meio de um campo de batalha, e a segunda é que a sua tarefa é principalmente a do samaritano. Certamente, na Igreja, há também o anúncio, e não só o cuidado das feridas, mas, no fundo, Jesus começou assim. Curou e, ao mesmo tempo, anunciou a boa nova. A cura, o cuidado do corpo da humanidade é parte integrante do Evangelho, não é algo que vem depois, como consequência ou epílogo. A outra mensagem pode ser remontada à palavra de Jesus: "Quero misericórdia, e não sacrifício", isto é, prefiro o ato de amor em vez do ato de culto. Trata-se, então, de um apelo que transcende a comunidade cristã, porque o amor não é privatizável e não é exclusivamente confessional.
Antonio Spadaro – Na entrevista à Civiltà Cattolica, ele usou muitas vezes a metáfora do edifício moral da Igreja, que corre o risco de desmoronar como um castelo de cartas. A imagem do desmoronamento, lendo os escritos de Bergoglio, volta frequentemente, o que demonstra como é forte nele a ideia da necessidade da reforma. Por isso, o apelo de Jesus a São Francisco, "Vai e repara a minha Igreja", certamente está dentro da escolha de assumir tal nome como pontífice.
Maria Cristina Bartolomei – Francisco, porém, também é a imagem do "irmão universal", que não incute temor, mas que, ao invés, se despojou de si mesmo. Além disso, São Francisco é venerado de diferentes maneiras, não apenas por todos os cristãos, mas também pelos muçulmanos. No Papa Bergoglio, em suma, também existe essa ideia do "irmão universal".
Serena Noceti – Francisco é o homem do Evangelho sine glossa, que atua pela reconstrução da Igreja e aceita se tornar diácono, porque traz no coração o processo da evangelização. Pensemos, por exemplo, na Porciúncula, que se encontra dentro de uma basílica papal: é o lugar da fraternidade, do primeiro Capítulo, portanto também do esforço para entender como poder reconstruir a Igreja. É o lugar da escolha da essencialidade. A complexidade da fase histórica não é anulada, mas enfrentada, identificando o processo transformativo, aquele que é o portador de futuro. Com base nisso, a ideia de Bergoglio é a da tradição que cresce pelo aporte de todos os componentes do povo de Deus.
Quais são os fatos e as decisões que estão marcando mais esse pontificado?
Paolo Ricca – Pessoalmente, vejo o risco de que esse processo de mudança, de reforma, de novidade em sentido evangélico permaneça ligado demais à pessoa. O ponto, portanto, é de se fazer tornar eclesial o que até agora permaneceu em nível de um carisma pessoal.
Antonio Spadaro – E se fosse o contrário? Isto é, se o papa expressasse o que está historicamente presente na Igreja hoje? Tenho a impressão de que ele tem esse impacto, não porque seja ele quem imprima esse movimento, mas porque ele o captou como presente na vida espiritual do mundo.
Serena Noceti – Na minha opinião, essa fase pós-conciliar deve ser lida a uma longa distância. A impressão é de que a consolidação das reformas conciliares recém-começou e, depois, abandonado em parte, encontra hoje um momento de nova coagulação. Ratzinger, pela sua formação, pensou que a Igreja poderia ser reformada através da definição de uma teoria a ser aplicada. Essa é uma dinâmica requintadamente tridentina, possível apenas para as instituições homogêneas. A Igreja, ao invés, é uma instituição heterogênea, e o é cada vez mais, porque se tornou uma Igreja mundial e, como tal, não muda em virtude da elaboração de teorias, mas sim pela realização de ideias que são encarnadas, sem contradição acima de tudo por parte daqueles que as propõem e através de processos que necessariamente são plurais e diferenciados. No Papa Francisco, há dois elementos fundamentais: uma linguagem compreensível que todos entendem e a experiência das dinâmicas comunicativas sinodais.
Maria Cristina Bartolomei – O aspecto de Bergoglio que, a meu ver, impressionou o público em geral é, em primeiro lugar, a compreensibilidade da linguagem. Assim como acertaram em cheio a sua advertência contra a perversão no uso do dinheiro e a vontade de um governo da Igreja mais colegial, do qual descende a sua afirmação de que o presidente da Conferência Episcopal Italiana não deve mais ser nomeado, mas sim eleito.
Além disso, sobre a referência de Bergoglio a São Francisco, eu acho que há um componente simbólico, justamente porque Francisco é o santo dos pobres, mas também representa a anti-instituição. Certamente, as categorias com que esse papa se expressa são próprias de um homem da sua idade. No entanto, é uma pessoa pronta para ouvir: é a primeira vez, por exemplo, que o problema da mulher na Igreja foi posto em foco com tão grande força. Não se trata de uma questão secundária. Ele sabe disso e o diz com muitas clareza e envolvimento emotivo: também sobre esse aspecto pode acontecer de tudo, embora não imediatamente. Vejo em Bergoglio uma grande capacidade de antecipar os tempos: é como se ele caminhasse e, enquanto caminha, já vê mais adiante, indica uma direção.
Serena Noceti – Além da questão das mulheres, Bergoglio enfrenta outros dois outros aspectos importantes. Um está ligado aos sacerdotes, porque o seminário ainda forma um padre de modelo tridentino, "revisto", mas ainda funcional a esse esquema de Igreja. O outro aspecto gira em torno da Igreja local e, portanto, diz respeito também ao tema da formação dos bispos e das suas carências.
Paolo Ricca – Na entrevista à Civiltà Cattolica, o discernimento é apresentado como o centro da espiritualidade desse papa. É preciso se perguntar, então, se esse discernimento também é aplicável à história. A meu ver, de fato, uma questão não resolvida da situação ecumênica atual é o juízo que a Igreja Católica dá sobre a Reforma Protestante do século XVI, à qual o Concílio de Trento respondeu. Como o papa diz que a primeira resposta não é necessariamente a melhor, eu me pergunto se é possível imaginar outra. A Reforma, e o que dela nasceu, com todos os seus limites, foi um fenômeno – para retomar uma expressão de Leonardo Boff – de eclesiogênese, ou seja, o nascimento de um novo tipo de Igreja. O protestantismo, com todas as suas variáveis, produziu, bem ou mal, uma cristandade que vive sinodalmente. Então, se se pudesse superar – em um processo de discernimento de segunda rodada – essa abordagem que, infelizmente, ainda está no Vaticano II e se entendesse que ali nasceu um novo modelo de Igreja, o discurso ecumênico também adquiriria outra consistência.
Antonio Spadaro – O discernimento sempre tem a ver com a história. O Papa Francisco defende que nós, católicos, temos coisas a aprender com os ortodoxos. Mas também é preciso considerar a abordagem da Companhia de Jesus: em particular, há uma figura-chave que deveria ser estudada, porque é o modelo desse papa, ou seja, Pedro Fabro. A abordagem à Reforma Protestante que ele teve é a que o Papa Francisco sente como própria, ou seja, aquela na qual predomina o elemento do diálogo, da misericórdia, da abertura de coração. Outra figura interessante é a do Papa Cervini, Marcelo II, que reinou apenas 20 dias, mas que começou imediatamente, em 1555, um processo de reforma da Igreja Católica. Provavelmente, para se entender Francisco, é preciso colocar juntos Marcelo II e Pedro Fabro: só assim se compreende a sua ideia de discernimento dos processos da história e o diálogo de aprendizagem que ele quer estabelecer também com as outras experiências eclesiais.
Quais poderiam ser os resultados desses mecanismos que o Papa Francisco está desencadeando?
Paolo Ricca – Do ponto de vista estritamente ecumênico, esse papa não se expressou – ao menos até agora – de maneira significativa, nova, diferente. É claro, as expectativas são muitas, também em vista de 2017, o 500º aniversário da Reforma Protestante. Certamente, esse papa tem todas as credenciais para fazer coisas novas.
Antonio Spadaro – Francisco tem duas definições fundamentais de Igreja: povo de Deus e, depois, a de Inácio de Loyola: Santa Madre Igreja hierárquica. Portanto, sua visão é absolutamente católica. Dito isso, para ele, o problema ecumênico é algo fundamental: entende-se isso não só das coisas que ele disse, mas também do seu passado, das suas relações com tantos pastores protestantes e anglicanos. Mas, para o Papa Francisco, há uma urgência que vai além do ecumenismo: é preciso anunciar o Evangelho às pessoas, a cada um. E esse é um discurso ainda mais radical.
O papa está consciente – e em que medida – da oposição que existe contra ele em grandes setores da Igreja, e também na Cúria Romana?
Antonio Spadaro – Ele está absolutamente consciente tanto dos movimentos fundamentais, quanto das reações jornalísticas. Porém, ele vive essa situação de maneira muito serena: Bergoglio é uma pessoa livre e determinada, que segue a moção do Espírito que ele percebe na oração e no diálogo com os outros. E isso lhe dá paz. O que ele faz não responde a um projeto político, mas sim a uma profunda visão espiritual da realidade, para a qual a mudança das estruturas não pode ser senão fruto de uma mudança mais interior: todo o resto, se não é de Deus, morre. Assim, ele vai em frente e vive também a oposição com tranquilidade. A discordância contra ele, além disso, está espalhada em vários setores.
Há também progressistas que dizem que Francisco fala muito, mas no final não faz as reformas. A essas pessoas, a meu ver, falta o discernimento para compreender que as mudanças profundas – não estruturais, mas espirituais, isto é, verdadeiras – requerem tempo. No entanto, vendo bem, esse papa já mudou muitas coisas. Certamente houve uma inversão de percepção e também de significado. Reformas repentinas, imediatas, drásticas só dilacerariam o tecido eclesial, imprimiriam um movimento inatural que seria, por sua vez, fruto de atitudes primaciais de tipo absolutista. A imagem mais realista que me vem à mente é a de uma espécie de terremoto que Bergoglio imprimiu: todos ficamos um pouco desnorteados.
Para onde leva esse terremoto? Qual é a sua direção?
Antonio Spadaro – A exigência do Papa Francisco é de que o Evangelho chegue a todos, seja qual for a condição em que as pessoas vivam. No momento em que ele fala de "abrir as portas", nós todos imaginamos que ele queira dizer abrir as portas da Igreja, para que as pessoas entrem. Mas esse é um segundo significado: o primeiro é que é preciso abrir as portas da Igreja para que o Senhor saia. Há uma passagem que ele escreveu há muito tempo, é muito breve, mas central. Ele se referia às escolas católicas: "As nossas escolas não devem, de modo algum, aspirar à formação de um exército hegemônico de cristãos que conheçam todas as respostas, mas deve ser o lugar onde todas as perguntas são acolhidas, onde, à luz do Evangelho, encoraja-se a busca pessoal e não se a interrompe com muros verbais, muros que são bastante frágeis e que, pouco tempo depois, desmoronam. O desafio maior requer profundidade, atenção à vida, requer que se cure e se liberte dos ídolos".
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Francisco e a Igreja que virá. A análise de especialistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU