12 Março 2014
Deus é somente bom. O mal, no entanto, existe. Quem o criou? A resposta a essa pergunta é bastante incerta por parte dos três monoteísmos, mas, se Deus criou tudo o que existe, e se o mal existe, a lógica concluiria que Deus também criou o mal. Ou senão quem?
A reflexão é de Eugenio Scalfari, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 07-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Agradeço a Riccardo Di Segni pela gentil citação que faz dos meus inúmeros artigos sobre o Papa Francisco e o diálogo que tive com o pontífice em setembro passado. Mas o agradeço, sobretudo, pela contribuição que fornece na sua carta aqui publicada.
Como sabemos e como o artigo do rabino de Roma confirma, o judaísmo também teve a sua evolução com o passar do tempo; as religiões se adaptam às mudanças da sociedade nas quais estão presentes e ainda mais aquele "povo eleito" que esteve na origem do monoteísmo e, dispersando-se na diáspora no primeiro século da era cristã, levou as suas escrituras e a sua visão religiosa para toda a Ásia Menor, para toda a África setentrional, para toda a Europa do leste ao oeste e, enfim, mais recentemente, para a América do Norte.
Depois de infinitas perseguições, o genocídio do Holocausto provocou o horror, a solidariedade e o respeito do mundo inteiro e permanecerá sempre na nossa memória e dos nossos filhos.
Acrescento a essas considerações uma notícia pessoal que talvez poderá interessar Di Segni: eu fiquei sabendo apenas há alguns anos que tenho dentro de mim uma derivação judaica por parte materna; a família da minha mãe se chamava e se chama Fanuel, judeus sefarditas estabelecidos na Itália há alguns séculos, muitos dos quais se converteram à religião católica no século XVIII, e alguns deles fervorosamente crentes, como minha mãe e minha avó.
Dito isso, o rabino de Roma coloca algumas questões que merecem uma resposta. Acima de tudo, ele faz uma pergunta a mim, pessoalmente: eu me declaro e sou um não crente, mas – diz ele – o não crente também crê em alguma coisa. Em que eu acredito?
Eu respondo brevemente assim, como também respondi ao Papa Francisco no nosso encontro impresso depois em um livro de dupla assinatura: eu não acredito que haja um Além onde as almas dos indivíduos humanos continuam vivendo de algum modo; não acredito em nenhuma divindade; não acredito que as nossas pessoas sejam compostas de um corpo mortal e de uma essência imortal chamada alma; não acredito que o nosso trânsito terreno tenha um "sentido último".
Acredito que tenha um sentido no Aquém se o indivíduo em questão considera dá-lo, o que muitas vezes não acontece. E isso é tudo acerca da minha não crença. Eu deveria me delongar muito mais sobre os aspectos filosóficos e até científicos da minha não crença; falei a respeito amplamente em alguns dos meus livros; um artigo de jornal não é o âmbito adequado para a necessidade.
Passo agora a algumas observações do meu interlocutor sobre o Papa Francisco e sobre a Igreja Católica em relação à religião judaica. Sobretudo sobre o tema do amor, da justiça, da misericórdia, do pecado.
Historicamente, existem três religiões monoteístas, que, em ordem de sua aparição, veem o judaísmo no primeiro lugar, o cristianismo no segundo, e o islamismo no terceiro. Todas as três acreditam em um só Deus, que, para todas as três, não tem um nome pronunciável e, de fato, não deve ser nomeado. Deus é Deus, e ponto final. Ele criou o Universo e todas as coisas existentes.
As "sagradas escrituras", que cada um dos três monoteísmos produziu como relatos e também como leis para se obedecer e regras para adequar os próprios comportamentos, atribuem a Deus uma série de potencialidades que não variam muito entre uma e outra, mesmo que tenham se modificado notavelmente ao longo dos séculos. O Deus monoteísta é amado, respeitado, rezado, e os seus fiéis o consideram eterno, onipotente, onisciente, onipresente. Também acreditam que ele é justo, misericordioso, severo com os malvados, amoroso com os bons. Quem não respeita as leis divinas e as regras provenientes das "escrituras" comete pecado, mas, se e quando se arrepende, é perdoado. Essa é a essência dos três monoteísmos.
Como não crente, eu observo: as potencialidades do Deus monoteísta não são possuídas pelos homens, mas são por todos desejadas: nós queremos ardentemente ser eternos, onipotentes, oniscientes e onipresentes. Não o somos e, por isso, atribuímos a Deus o que gostaríamos para nós.
Atribuímos-lhe tipicamente sentimentos nossos: amor, justiça, ira, perdão, misericórdia. O mal, não; Deus é somente bom. O mal, no entanto, existe. Quem o criou? A resposta a essa pergunta é bastante incerta por parte dos três monoteísmos, mas, se Deus criou tudo o que existe, e se o mal existe, a lógica concluiria que Deus também criou o mal. Ou senão quem?
Desse brevíssimo resumo, é claro para mim que o Deus monoteísta é profundamente antropomórfico, isto é, criado pela fantasia dos homens. Mas essa é precisamente uma das causas de não crença.
Enfim: os católicos reconheceram tem tempos recentes que os judeus não foram deicidas, não foram eles que condenaram Jesus Cristo. A Igreja se arrependeu de ter afirmado isso e também de ter perseguido os judeus. Esse certamente é um progresso: os papas mais recentes e especialmente João XXIII, Paulo VI, Wojtyla, Ratzinger e Bergoglio declararam que os judeus são os nossos "irmãos mais velhos", e o seu Deus é também o nosso. O Papa Bergoglio até disse no nosso diálogo acima citado que "Deus não é católico porque é universal".
Essa conscientização é certamente louvável, mas a religião judaica não contempla o Deus trinitário e muito menos a islâmica. O Deus cristão é um Deus uno e trino, e Jesus de Nazaré é uma articulação chamada Filho. Mas judeus e muçulmanos não contemplam nenhum Filho, muito menos um Filho encarnado. Os judeus creem que um Messias virá, mensageiro do Deus único, que anunciará a chegada iminente do Reino dos justos.
Até mesmo os cristãos, em uma primeira fase da pregação de Jesus, pensaram que o seu mestre era o Messias, mas os judeus ainda esperam o Messias, e quanto a Jesus de Nazaré não estão nem certos de que ele jamais existiu. Não têm a prova disso, nem nunca a procuraram. Com efeito, essa prova não existe, senão nos Evangelhos.
Como não crente, tudo isso não diz respeito a mim, mas, ao invés, me dizem respeito os valores que as religiões contêm, me diz respeito a função social das religiões, a sua influência sobre os comportamentos e sobre os sentimentos das pessoas. Por isso, vejo de modo muito positivo a ação inovadora do Papa Francisco e a reaproximação entre as religiões, quando renunciam à imagem de um Deus que seja bandeira de superioridade, de fundamentalismo e até mesmo de guerra como muitas vezes ocorreu no passado e como ainda ocorre nos fanáticos que praticam o terrorismo em nome de um Deus cruel. Os terroristas o transformaram em um demônio que traz massacres e ruínas.
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O rabino e o não crente. O problema continua sendo: ''quem criou o mal?''. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU