Por: André | 03 Março 2014
O texto da conferência-bomba que abriu o Consistório sobre a família já não é um segredo. Indica dois caminhos para readmitir à comunhão os divorciados recasados, seguindo o exemplo da Igreja antiga.
Fonte: http://bit.ly/1eIQkCu |
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa, 01-03-2014. A tradução é de André Langer.
A conferência introdutória do cardeal Walter Kasper no Consistório da semana passada já não está fechada a sete chaves. Tornou-a pública, com um furo jornalístico magistral, o jornal italiano Il Foglio, dirigido por Giuliano Ferrara, que se antecipou em muito à saída da mesma conferência em forma de livro, pela editora Queriniana.
Mas, que esta conferência tivesse que ser mantida em segredo é um contrassenso, depois das palavras com que o Papa Francisco a elogiou, no dia 21 de fevereiro, ao final dos dois dias do Consistório dedicados à questão da família.
“Ontem, antes de dormir, mas para não dormir, li – reli – o trabalho do cardeal Kasper e queria agradecer-lhe porque li uma teologia profunda, também um pensamento sereno na teologia. É agradável ler uma teologia serena. E também encontrei isso que Santo Inácio nos dizia, esse ‘sensus Ecclesiae’, o amor pela Mãe Igreja. Fez-me bem e me deu uma ideia – desculpe-me, eminência, se o faço corar –, mas a ideia é que isto se chama ‘fazer teologia de joelhos’. Obrigado. Obrigado.”
Em sua conferência, Kasper disse que queria “colocar apenas algumas perguntas” porque “uma resposta será tarefa do Sínodo em sintonia com o Papa”. Mas lendo o que disse aos cardeais, as suas são muito mais do que perguntas, são propostas de solução já solidamente assentadas, às quais o Papa Francisco parece que quer aderir.
E são propostas fortes, uma verdadeira “mudança de paradigma”. Em particular, sobre o que Kasper considera o problema dos problemas, a comunhão aos divorciados recasados, ao qual dedica mais da metade das duas horas de seu discurso.
Como Chiesa.it havia antecipado em dois artigos, a pedra de toque das propostas de Kasper foi a Igreja dos primeiros séculos, também ela “confrontada com conceitos e modelos de matrimônio e de família muito diferentes daqueles que Jesus pregou”.
Diante do desafio do presente, Kasper declarou que “nossa postura hoje não pode ser uma adaptação liberal ao ‘status quo’, mas uma posição radical que vai à raiz, que vai ao Evangelho”.
Para comprovar se isto é verdade ou não – para muitos cardeais que intervieram no debate não é –, seguem as passagens cruciais da conferência.
O problema dos divorciados recasados, de Walter Kasper
[...] Não basta considerar o problema apenas do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como instituição sacramental. Precisamos de uma mudança de paradigma e devemos – como fez o bom samaritano – considerar a situação também a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda.
Todos sabemos que a questão dos casamentos de pessoas divorciadas e recasadas é um problema complexo e espinhoso. [...] O que a Igreja pode fazer nestas situações? Não pode propor uma solução diferente ou contrária às palavras de Jesus. A indissolubilidade de um matrimônio sacramental e a impossibilidade de um novo matrimônio durante a vida do outro cônjuge fazem parte da tradição da fé vinculante da Igreja, que não pode ser abandonada ou dissolvida baseando-se em uma compreensão superficial da misericórdia a preço baixo. [...] A pergunta é, portanto, como pode a Igreja corresponder a este binômio indissolúvel de fidelidade e misericórdia de Deus em sua ação pastoral em relação aos divorciados recasados no civil. [...]
Hoje, encontramo-nos diante de uma situação similar à do último Concílio. Também naquela época existiam, sobre a questão do ecumenismo ou da liberdade religiosa, por exemplo, encíclicas e decisões do Santo Ofício que pareciam excluir outros caminhos. O Concílio, sem violar a tradição dogmática vinculante, abriu as portas. Podemos nos perguntar: não é talvez possível um desenvolvimento posterior também na presente questão? [...]
Limito-me a duas situações, para as quais em alguns documentos oficiais já se mencionam algumas soluções. Desejo colocar apenas algumas perguntas, limitando-me a indicar a direção das respostas possíveis. Porém, dar uma resposta será tarefa do Sínodo em sintonia com o Papa.
Primeira situação
A Familiaris Consortio afirma que alguns divorciados recasados estão convencidos subjetivamente, em consciência, que seu precedente casamento, irremediavelmente desfeito, nunca foi válido. [...] Segundo o Direito Canônico, a avaliação é tarefa dos Tribunais Eclesiásticos. Ao não serem estes “iure divino”, mas que se desenvolveram historicamente, às vezes, nos perguntamos se a via judicial deve ser a única via para resolver o problema ou se não seriam possíveis outros procedimentos mais pastorais ou espirituais.
Como alternativa, se poderia pensar que o bispo possa confiar esta tarefa a um sacerdote com experiência espiritual e pastoral, como o penitenciário ou o vigário episcopal.
Independentemente da resposta que é preciso dar a esta pergunta, recordemos o discurso do Papa Francisco aos oficiais do Tribunal da Rota Romana de 24 de janeiro de 2014, no qual afirma que a dimensão jurídica e a dimensão pastoral não estão em contraposição. [...] A pastoral e a misericórdia não se contrapõem à justiça, mas, por assim dizer, são a justiça suprema, porque por trás de cada causa eles não vislumbram apenas um caso que é preciso examinar na ótica de uma regra geral, mas uma pessoa humana que, como tal, não representa apenas um caso e que tem sempre uma dignidade única. [...] Realmente, é possível decidir sobre o bem ou o mal das pessoas em segunda e terceira instância apenas sobre a base de atos, ou seja, de documentos, sem conhecer nunca a pessoa e sua situação?
Segunda situação
Será equivocado buscar a solução do problema apenas em uma generosa ampliação do procedimento de nulidade do matrimônio. Assim se criaria a perigosa impressão de que a Igreja procede de maneira desonesta concedendo o que na realidade são divórcios. [...] Portanto, devemos levar em consideração também a questão mais difícil da situação do matrimônio ratificado e consumado entre batizados onde a comunhão matrimonial se desfez irremediavelmente e onde um ou ambos os cônjuges contraíram um segundo casamento civil.
Em 1994, a Congregação para a Doutrina da Fé nos fez uma advertência quando estabeleceu – e o Papa Bento XVI o confirmou durante o Encontro Internacional das Famílias, em Milão, em 2012 – que os divorciados recasados não podem receber a comunhão sacramental, mas podem receber a espiritual. [...]
Muitos estarão agradecidos por esta resposta, que é uma verdadeira abertura. Mas também coloca várias perguntas. Efetivamente, quem recebe a comunhão espiritual é uma só coisa com Jesus Cristo. [...] Por que, então, não pode receber também a comunhão sacramental? [...] Alguns defendem que precisamente a não participação na comunhão é um sinal da sacralidade do sacramento. A pergunta que se coloca é: não é, talvez, uma instrumentalização da pessoa que sofre e pede a ajuda se fazemos dela um sinal e uma advertência para os outros? Deixamos que morra sacramentalmente de fome para que outros vivam?
A Igreja das origens nos dá uma indicação que pode servir como caminho de solução do dilema, à qual o professor Joseph Ratzinger havia já feito menção em 1972. [...] Nas Igrejas locais individuais existia o direito consuetudinário em base ao qual os cristãos que viviam um segundo vínculo, embora estivesse vivo o primeiro cônjuge, depois de um tempo de penitência tinham à disposição [...] não um segundo matrimônio, mas através da participação na comunhão, uma tábua de salvação. [...] A pergunta é: esta via além do rigorismo e do laxismo, a via da conversão, é também o caminho que podemos percorrer na presente questão?
A um divorciado recasado:
1. se se arrepende de seu fracasso no primeiro matrimônio,
2. se esclareceu as obrigações do primeiro matrimônio e se excluiu de maneira definitiva voltar atrás,
3. se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com o novo casamento civil,
4. se se esforça para viver ao máximo de suas possibilidades o segundo matrimônio a partir da fé e educar seus filhos na fé,
5. se deseja os sacramentos como fonte de força em sua situação, devemos ou podemos negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação, de “metanoia”, o sacramento da penitência e depois o da comunhão?
Esta possível via não seria uma solução geral. Não é o caminho largo da grande massa, mas o estreito da parte provavelmente menor dos divorciados recasados, sinceramente interessada nos sacramentos. Não é necessário talvez evitar o pior precisamente aqui? Efetivamente, quando os filhos dos divorciados recasados não veem seus pais aproximarem-se dos sacramentos, normalmente também eles não encontram o caminho para a confissão e a comunhão. Não teremos em conta que perderemos também a próxima geração e, talvez, também a seguinte? A nossa práxis consumada, não demonstra ser contraproducente? [...]
A prática da Igreja das origens
Segundo o Novo Testamento, o adultério e a fornicação são comportamentos em fundamental contraste com o ser cristão. Do mesmo modo, na Igreja antiga, junto com a apostasia e o homicídio, entre os pecados capitais que excluíam da Igreja, estava também o adultério. [...] Sobre as correspondentes questões exegéticas e históricas existe uma ampla literatura, entre a qual é quase impossível orientar-se, e interpretações diferentes. Podem-se citar, por exemplo, por um lado, G. Cereti, Divorzio, nuove nozze e penitenza nella Chiesa primitiva, Boloña 1977, 2013, e, por outro lado, H. Crouzel, L’Eglise primitive face au divorce, Paris 1971, e J. Ratzinger, […] 1972, [reproduzido] no L'Osservatore Romano 30 de novembro de 2011.
Não pode haver, contudo, dúvida alguma sobre o fato de que na Igreja das origens, em muitas Igrejas locais, por direito consuetudinário havia, depois de um tempo de arrependimento, a prática da tolerância pastoral, da clemência e da indulgência.
No contexto desta prática entende-se também, talvez, o cânon 8 do Concílio de Niceia (325), dirigido contra o rigorismo de Novaciano. Este direito consuetudinário está expressamente testemunhado por Orígenes, que o considera não irrazoável. Também Basílio o Grande, Gregório Nazianzeno e alguns outros fazem referência a ele. Explicam o “não irrazoável” com a intenção pastoral de “evitar o pior”. Na Igreja latina, por meio da autoridade de Agostinho, esta prática foi abandonada em favor de uma prática mais rigorosa. Também Agostinho, no entanto, em uma passagem fala de pecado venial. Não parece, portanto, ter excluído toda solução pastoral.
Seguidamente, a Igreja do Ocidente, nas situações difíceis, para as decisões dos sínodos e similares sempre buscou, e também encontrou, soluções concretas. O Concílio de Trento [...] condenou a posição de Lutero, mas não a prática da Igreja do Oriente. [...]
As Igrejas ortodoxas conservaram, conforme o ponto de vista pastoral da tradição da Igreja das origens, o princípio para eles válido da oikonomia. A partir do século VI, no entanto, fazendo referência ao direito imperial bizantino, foram além da posição da tolerância pastoral, da clemência e da indulgência, reconhecendo, junto com as cláusulas do adultério, também outros motivos de divórcio, que partem da morte moral e não apenas física do vínculo matrimonial.
A Igreja do Ocidente seguiu outro percurso. Exclui a dissolução do matrimônio sacramental ratificado e consumado entre os batizados; conhece, contudo, o divórcio para o matrimônio não consumado, assim como, pelo privilégio paulino e petrino, para os matrimônios não sacramentais. Junto com este estão as declarações de nulidade por vício de forma; a este propósito poderíamos nos perguntar, no entanto, se não se situam em primeiro plano, de maneira unilateral, pontos de vista jurídicos historicamente muito tardios.
J. Ratzinger sugeriu retomar de maneira nova a posição de Basílio. Pareceria ser uma solução apropriada, solução que está na base das minhas reflexões. Não podemos fazer referência a uma ou outra interpretação histórica, que segue sendo controvertida, e nem sequer repetir simplesmente as soluções das Igrejas das origens em nossa situação, que é completamente diferente. Na mudada situação atual podemos, não obstante, retomar os conceitos de base e tentar realizá-los no presente, na forma que é justa e adequada à luz do Evangelho.
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Kasper muda o paradigma. Bergoglio aplaude - Instituto Humanitas Unisinos - IHU