13 Fevereiro 2014
Nunca se tinha assistido ao espetáculo de dois pontífices romanos que permanecem em contato entre si, que colaboram, que aceitam carregar juntos o peso do "ministério petrino", embora não o carregando em partes iguais.
A opinião é do historiador italiano Franco Cardini, professor do Istituto Italiano di Scienze Umane (Sum) e membro do conselho científico da Escola Superior de Estudos Históricos de San Marino. O artigo foi publicado no jornal Europa, 11-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Já estamos acostumados. Passamos os primeiros momentos de escândalo, de desorientação, de perplexidade, e à parte dos netos de Tertuliano para os quais tudo o que acontece de novo é um sinal claro do "começo do fim", aceitamos bastante tranquilamente que, na Igreja romana, existem e coexistem dois papas: um efetivo e um emérito (não deposto, nem resignado, nem abdicante).
Por outro lado, uma vez descartada a ideia de que tudo isso é algo de excepcional, de inédito e de inadmissível, é preciso também refletir sobre uma grande, importante e significativa novidade que não representa em nada uma manobra mais ou menos desajeitada que visa a resolver a delicada situação que ocorreu há um ano, em fevereiro de 2013, com aquela que, impropriamente, alguns definiram como "a Grande recusa" de Bento XVI.
Dois papas, e talvez até três, na história da Cristandade latina muitas vezes correinaram sobre a Igreja: mas se tratava de pontífices adversários e concorrentes entre si, em tempos de cisma, e, nesse propósito, não era uma escolha feliz definir um dos dois como "antipapa" (uma figura e um ofício que nunca existiram na Igreja: e uma palavra ofensiva cunhado em analogia ao termo "Anticristo"): nunca se tinha assistido ao espetáculo de dois pontífices romanos que permanecem em contato entre si, que colaboram, que, em suma, aceitam carregar juntos o peso do "ministério petrino", embora não o carregando em partes iguais. Dois papas, no entanto, é preciso dizer, muito diferentes entre si: por extração, por formação, por endereço e sensibilidade no plano propriamente eclesiológico e pastoral.
Estamos diante da perpetuação de uma situação equívoca, sinal remanescente de discórdia no seio da cúpula da Igreja que ainda não se teria aplacado? Não propriamente, deixando claro que a Igreja ainda está ameaçada por dois tipos diferentes de cisma: um entre os cardeais, que se refletiria sobre toda a comitiva do "Povo de Deus"; e um, aquele já assinalado por personagens diferentes entre si como Pietro Prini ou Riccardo Chiaberge, que é o "cisma submerso", por força do qual a hierarquia católica dirige e dispõe, mas os fiéis se dividem entre aqueles que não são mais praticantes, observantes, e aqueles que, ainda o sendo (e talvez justamente por serem-no), no entanto, nem sempre estão dispostos a obedecer.
E passamos das inquietas faixas de "extrema direita" e de "extrema esquerda" (pitorescamente representadas, por exemplo, em Gênova, pelas inclinações contrapostas dos nostálgicos do cardeal Siri e de Baget Bozzo, e dos do Pe. Gallo) até aqueles que consideram como não válida a missa celebrada segundo a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, ou aos "sedevacantistas", para os quais, depois de Pio XII, todas as eleições para a cátedra de Pedro seriam consideráveis como inválidas.
O ponto é que a Igreja Romana muda, mesmo que em uma continuidade que, ao menos desde o século IV, é reconhecida por muitos. E que ela enfrentou várias "reformas", dentre as quais duas – o do século XI e a do século XVI, que alguns preferem chamar de "Contrarreforma" – foram no mesmo sentido da transformação de uma realidade hierárquica de estrutura federal em outra, ao contrário, em estrutura piramidal, culminando em uma instituição monárquica.
A Igreja se distingue no "clero", detentor da autoridade e guardião do tesouro sacramental, e o "povo". Tem-se acesso ao clero através de ordens iniciáticas (canonisticamente falando, sete) em cuja cúpula estão os "presbíteros", os sacerdotes.
Ela está ordenada em províncias eclesiásticas e em dioceses, e à frente de cada uma há um governador-supervisor-coordenador, o "bispo". Hierarquicamente falando, nenhum grau é superior ao do bispo: o próprio papa outra coisa não é do que o bispo de Roma. Antiquíssimo órgão de governo da Igreja é o concílio, ou seja, a periódica reunião dos bispos.
Mas, na Igreja latina, as funções do concílio foram, em diversas ocasiões e progressivamente, assumidas pelo "papa", pelo bispo de Roma, que, especialmente, a partir do século XI, criou-se uma corte própria de representação e de governo, a Cúria, enquanto a instituição de uma função nova, a de "cardeal", cumpria a função de munir essa corte de verdadeiros "príncipes eleitores", aos quais era demandada a escolha do novo papa na morte do anterior.
Mas, com o tempo e, principalmente, na primeira metade do século XV, foram fortes as reivindicações de quem pediu, e teorizou, um retorno da Igreja a uma condução federal e, portanto, à soberania do concílio com relação à do pontífice romano.
Derrotadas duramente na metade do século XV – especialmente pelo ex-conciliarista Enea Silvio Piccolomini, que se tornou o autocrático Pio II –, as reivindicações conciliares renasceram na segunda metade do século XX com o Vaticano II. E hoje continuam fortes.
Goste-se ou não, embora ainda não se fala a respeito no nível das mídias, o ponto é esse. Bento XVI, em fevereiro do ano passado, foi embora por não ser mais capaz de gerir e conter as correntes diversas e adversas entre si dentro do Sacro Colégio Cardinalício, do corpo episcopal e dos próprios "clero e povo": em suma, de todos os membros da Igreja.
O brevíssimo conclave no qual foi eleito um jesuíta argentino já muito votado no conclave anterior teve o caráter de um evento claríssimo, transparente, que só quem não queria entender, fingiu não entender.
Com Francisco, foi a ala reformista do alto clero – com todos os seus defensores abaixo – que venceu: foi a ala que quer marchar sobretudo rumo à unidade com as principais Igrejas cristãs (cujo principal obstáculo é o "primado de Pedro", a autoridade monárquica do papa, a menos que ela se reduza à auctoritas de um primus inter pares) e optar, portanto, pelo campo conciliar; mas que, também e acima de tudo, pretende proclamar em voz alta que o seu lugar é ao lado dos "últimos da terra".
Ao lado de todos os "últimos": dos pobres, dos deserdados, dos discriminados por qualquer motivo (e eis o problema da homossexualidade), das crianças que correm o risco de não nascer por serem mortas pelo egoísmo ou pelo medo das suas próprias mães.
Não é uma batalha fácil: e é inútil tentar reconduzi-la aos velhos parâmetros da "direita" e da "esquerda", da "tradição" e do "progresso", porque as características de todas essas antigas fronteiras já se chocaram, confundiram e dissolveram.
Eis a razão íntima e última da coexistência de dois bispos de Roma. Já é um dado velho e que não escandaliza ninguém o fato de que também existam, ao lado dos bispos no cargo, bispos eméritos: a diocese de Roma não pode ser uma exceção, na medida em que o papa não pode não ser gradualmente reconduzido às suas funções ordinárias de bispo, mesmo que de uma diocese especial e investida, portanto, de prerrogativas particulares (o Vaticano, como Estado soberano, dota a Igreja de Roma de um instrumento precioso para ela, a independência dos poderes seculares: e ela não renunciará a isso). Mas é um sinal epocal que a diocese romana seja considerada como uma diocese como as outras, à parte de sua autoridade específica.
Estamos apenas no início das mudanças. O próximo movimento desse pontífice – ou do seu sucessor, se este não viver o suficiente – será a convocação de um novo concílio que terá, com relação ao Vaticano II, a mesma função dialética que este teve com relação ao Vaticano I. Quem elegeu transmitiu-lhe tal mandato, embora ninguém jamais o tenha explicitado. Não ainda: até que os tempos não estejam maduros.
A Igreja Católica conheceu 21 concílios ecumênicos, o de Niceia, em 325, ao Vaticano II: mas quase a metade deles pertence à Alta Idade Média. Do século XII ao século XIV, com a afirmação da autoridade monárquica pontifícia, só sete. Outros três entre os séculos XV e XVI, com a crise e a reafirmação da monarquia papal. E o de Trento, em meados do século XVI, depois do qual não houve mais concílios até o Vaticano I, em 1870.
Quase um século passou entre o Vaticano I (que confirmou e reforçou a autoridade pontifícia enraizada no tridentino) e o Vaticano II, cujo resultado pareceu ambíguo demais a muitos no plano teológico e litúrgico, sem contar no pastoral. Depois, meio século se passou entre o Vaticano II e hoje. Nesse meio século, a Modernidade entrou em crise, e a globalização alcançou uma fase com relação à qual a voz clara da Igreja é indispensável. Os tempos são duríssimos, mas, ao mesmo tempo, estão maduros.
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Dois papas, um só caminho rumo a um novo Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU