Por: Caroline | 24 Janeiro 2014
“Para estes missionários contemporâneos, o que realmente preocupa não é a vulnerabilidade de nossos jovens habitantes - o que os atormenta é que eles continuem pensando, sentindo e se expressando fora do padrão cultural dominante. Porque o capitalismo se expande mais facilmente quando não encontra barreiras idiossincráticas que obstruam seu curso avassalador”, afirma Cergio Prudêncio, compositor e educador boliviano, em artigo publicado pelo jornal boliviano La Razón, 15-12-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Nas últimas décadas observa-se uma generalização da premissa de financiamento de programas culturais que destinam-se à prevenção social. Assim como difundiu-se o uso do argumento da prevenção social para obter financiamentos. Mas, o que há por traz deste círculo vicioso?
O raciocínio básico desta premissa é muito simples. Trata-se de levar meninos e meninas para as práticas artísticas que, supostamente, os salvaguardariam dos riscos oferecidos na sociedade moderna, isto é, para que façam música para não façam delinquências. E, nesta perspectiva, justifica-se quase toda intervenção - sem ser necessário entrar em maiores detalhes sobre suas reais intenções e suas possíveis consequências.
Tratando mais especificamente do campo da música, o “Sistema”, projeto venezuelano megalomaníaco, canaliza quantidades estratosféricas de dinheiro, destinados específica e excludentemente para a proliferação de orquestras sinfônicas. Com variações, de proporção apenas, o modelo tem se difundido por quase todos os países latino americanos. Inclusive na Bolívia, é claro.
O projeto, anunciado pelo seu alcance supostamente terapêutico, é apoiado por diversos canais internacionais, entre eles a CAF que – em contraposição – nega recursos para empreendimentos que não se sujeitem conceitual e tecnicamente a este modelo.
Se o objetivo for realmente “preventivo” deveria ser aplicado para um menino que toca um violino ou um mohoceño (instrumento de origem boliviana de sopro), tuba ou trutruca (instrumento semelhante ao trombone), fagotes ou gaita, tambores ou cuíca, ou não? Não, não ocorre assim. O seu propósito é revelado em sua representação cultural. Para estes missionários contemporâneos, o que realmente preocupa não é a vulnerabilidade de nossos jovens habitantes - o que os atormenta é que eles continuem pensando, sentindo e se expressando fora do padrão cultural dominante. Porque o capitalismo se expande mais facilmente quando não encontra barreiras
idiossincráticas que obstruam seu curso avassalador.
É necessário lembrar: os “pobres” têm cultura; somos conscientes de nossas origens e de nossas fontes, produzimos formas de autorrepresentações, projetamos valores e credos, falamos com o mundo – ainda que em meio a tantas desigualdades – e construímos identidade.
Então, nossas crianças estariam em risco por não terem cultura? Isto é uma falácia. Estão expostos aos perigos derivados das ações de uma ordem hegemônica condicionante e segregacionista. E que, de maneira direta, são consequência de fatores políticos. Porque não é pelo o bom desenvolvimento de nossas qualidades características e particulares que os fundos profiláticos se saúdam, é, em panos limpos, pela homogeneização dos padrões locais numa cultura única.
Digo isto enfaticamente: aqui, na imensidão do mundo “pobre”, celebramos a cultura cotidianamente, nas ruas e nos morros, nos campos e debaixo das pontes, nos teatros e nas estações, em cada época do ano e durante todos os dias. E o fazemos com e por amor. Não sairemos infringindo a lei por não termos nos tornado eruditos. Seguiremos cantando, em nosso idioma, com nossos e com outros instrumentos, para nossos filhos e para os filhos dos outros, pela alegria de sermos diferente.
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Cultura como delinquência? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU