Por: Cesar Sanson | 16 Janeiro 2014
Quatro intelectuais discutem a natureza dos rolezinhos, analisam a resposta do Estado e da sociedade e até onde o movimento pode chegar.
A reportagem é de María Martín e Talita Bedinelli e publicada pela edição brasileira do El País, 15-01-2014.
Depois da série de protestos sociais iniciada em junho do ano passado, um novo fenômeno social começa a se desenhar no Brasil. Os rolezinhos começaram a ganhar a atenção quando no último 7 de dezembro cerca de 6.000 jovens se reuniram por meio das redes sociais no shopping Metrô Itaquera, na zona leste de São Paulo, uma das regiões mais pobres da cidade.
O grupo, maioria de pretos e pardos, compareceu ao centro de consumo que se auto-define como um “empreendimento alvo da nova classe média”, vestindo seus bonés e bermudas e ouvindo seus funks. Desde aquele dia, ao menos mais quatro rolezinhos, identificados pela polícia como tumultos, repetiram-se em diferentes shoppings da Grande São Paulo com casos de roubo isolados. Em todos, causaram pânico entre lojistas e compradores.
O Brasil coleciona histórias de discriminação em seus centros de consumo. No último mês de dezembro, um músico cubano negro ganhou uma indenização de 6.700 reais porque a Justiça considerou que ele foi vítima de preconceito ao ser abordado e levado para uma sala por seguranças no Shopping Cidade Jardim, o mais luxuoso da cidade, onde ele faria um show. Em 2000, um grupo de moradores de uma favela do Rio chegou de ônibus a um shopping da zona sul para mostrar à mídia que eram recebidos pelos lojistas e seguranças com preconceito e “cara de nojo”.
Mas no último final de semana, o fenômeno transpassou a fronteira da periferia. A decisão da Justiça de proibir os rolezinhos e ameaçar seus praticantes com multa de 10.000 reais, além da repressão policial vista em um novo encontro de cerca de 1.000 jovens no shopping Metrô Itaquera, mobilizou pelas redes sociais um setor da classe média do país todo refratário à violência policial. Os mesmos que foram reprimidos com balas de borracha e gás de pimenta nos protestos de junho. Agora, novos dez rolezinhos estão marcados para as próximas semanas em apoio aos jovens da periferia, entre eles um no JK Iguatemi, um dos mais caros de São Paulo que, com a liminar colada nas suas portas automáticas, barrou até seus próprios funcionários no último sábado.
O El País ouviu quatro intelectuais que refletiram sobre o fenômeno e discutiram sua natureza, analisaram a resposta do Estado e da sociedade a ele e apontaram seu possível rumo.
Paulo Lins (escritor, autor de Cidade de Deus)
"Não vejo nada espontâneo neste fenômeno"
O rolezinho é uma forma de trazer à tona o fato de que o Brasil é um país racista e demonstra que é uma manifestação extremamente política e organizada. Não vejo nada espontâneo neste fenômeno. Acho que o debate público na periferia do Brasil está muito grande. Desde os anos 90, a música, a literatura, a poesia, o rap são muito políticos e esses jovens se ligam assim na política, ouvem as pessoas falarem, debaterem. Eu mesmo já organizei vários debates com crianças nas favelas. Os políticos não estão percebendo que a periferia está mudando, que não aceita mais os desmandos políticos. Hoje você conversa com um jovem de 15 anos da periferia e ele sabe tudo o que está acontecendo, apresenta as mesmas ideias que um jovem do centro da cidade.
A resposta das autoridades diante do rolezinho não é novidade, sempre foi assim. Se entrarem cinco negros num shopping a segurança vai ficar olhando, vai ir atrás. A polícia brasileira é a que mais mata jovens negros. Todo mundo sabe disso. O Brasil é um país racista, como a maioria dos países na Europa, como os Estados Unidos. Isso acontece no mundo todo e os jovens de periferia estão cansados de ver isso. Uma menina de 15 anos que morava no morro recebeu 1.000 reais de presente de aniversário do pai para comprar um vestido. Ela era barrada nas lojas de grife, não conseguiu comprá-lo. Tenho uma amiga francesa mulata, que chegava nas boutiques de Ipanema e o pessoal queria botar ela para fora, até que ouviam o sotaque.
Mas o problema não é as pessoas serem racistas, é as instituições serem racistas. Não posso mudar o racismo pessoal, agora, quando é o Estado que é racista temos um problema. Essa forma de racismo é a que causa a violência. Uma classe média inteligente vai entender que essa forma como tratam a essas crianças nos shoppings é um dos principais motivos que causam violência.
A classe média tem que abraçar essa causa para viver num pais melhor. Roubo e arrastão sempre houve em qualquer situação. O importante é que as pessoas que não fazem isso estão lá também. O mais importante para nós, para imprensa, deveria ser o fato político.
Rudá Ricci (doutor em ciências sociais e autor de "Nas Ruas", sobre os protestos de junho)
"Quem está politizando esta brincadeira infantil é a PM"
Os rolezinhos nascem de dois sentimentos que se cruzam. O primeiro, fruto da inclusão pelo consumo provocado pelo lulismo. Não houve inclusão social pela luta pelos direitos (motivada por mobilizações e protestos sociais que, vitoriosos, gerariam identidade social e política) ou pela política (fruto de engajamento sindical ou partidário).
A inclusão pelo consumo disseminou que prestígio social se vincula a bens adquiridos, se possível, top de linha. O segundo sentimento é o ressentimento, fruto da condição social dos moradores da periferia. Não está diretamente vinculado ao padrão de consumo (vários deles possuem casas com TV tela plana, celulares e tênis de última geração), mas ao descaso dos governantes (não possuem áreas ou programas culturais ou de lazer e são tratados com violência pela polícia) e, principalmente, pela discriminação das classes médias tradicionais.
Por este motivo andam em multidão (mais de 1.000 jovens nos rolezinhos), porque sabem que em pequenos grupos sofrerão discriminação. Em grupos maiores, tomam o espaço que não os acolhe com muito ânimo. A partir daí, trata-se de uma ação infantil, nem mesmo adolescente: correm, "barbarizam" com gritos, uma ação primária de demarcação de espaço e uma denúncia velada da discriminação (afinal, ao barbarizarem estão reforçando o que os que discriminam já explicitam com olhares de recriminação).
Não há qualquer sinal de confronto de classe. O sinal é de agressividade, mas não violência (os freudianos sustentam que agressividade é sinal de defesa e normalidade, violência é patologia). Mas aí, entram os políticos e polícia militar para politizar esta situação. Os políticos se preocupam com a reação da classe média, que ainda acreditam que sejam formadores de opinião eleitoral (o que não é fato no Brasil, desde 2006, segundo demonstram vários estudos sobre processo eleitoral).
Acionam a PM que não possui cultura de respeito à diferença social. Avaliam qualquer situação fora do padrão de normalidade imposto por estas áreas de consumo sofisticado como perturbação da ordem. E atacam, como qualquer treinamento militar. Atacam o inimigo em potencial. Aí, podem estar politizando algo que é uma reação infantil.
De fato, os rolezinhos geram quebra de domínio de território por uma classe ou um comportamento específico de classe. Mas não é mais que uma reação infantil, de quem se sente discriminado e quer estar lá e ter prestígio ou reconhecimento que, como já ressaltei, em nosso país significa bens de alto consumo. Em uma palavra: quem está politizando esta brincadeira infantil é a PM. Algo similar ao que já fez em junho do ano passado. E vimos em que desaguou.
Alba Zaluar ( professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ)
"Acredito que seja uma brincadeira, não um movimento social"
O rolezinho é um fenômeno, a discussão agora é se é um movimento. Acredito que seja uma brincadeira, não um movimento social. Esses jovens precisam de diversão e estão buscando uma forma de diversão. O que precisa ser analisado é se a presença deles no shopping é prejudicial. Eu, se estivesse em um shopping, e encontrasse um grupo de pessoas de qualquer classe social gritando, fazendo arruaça, ficaria assustada. Eles deveriam ir ao parque, por que não vão ao Ibirapuera? Um shopping é um centro de consumo.
Pode até ser que, no fundo, essa garotada queira prejudicar quem quer consumir nesses shoppings e aí já não é uma brincadeira e, sim, uma forma de agressão às pessoas das quais elas sentem aversão ou inveja. Nesse contexto, poderíamos falar de uma luta de classes, mas uma luta de classes sem muito propósito. O que se tem é que estimular que eles se desenvolvam, façam coisas criativas, para que saiam da pobreza.
Acho que está havendo um exagero, inclusive por parte dos que querem proibir. E o fenômeno está ganhando um novo significado. E isso é o que eu temia, que as coisas voltassem ao que foi no ano passado, que se torne algo contra a polícia, nessa perspectiva das pessoas que são contra o sistema e que a polícia é repressiva e violenta. A polícia brasileira é, sim, muito violenta. Mas não acho que é essa a forma de resolver a questão.
Osana Pinheiro Machado (professora de antropologia na Universidade de Oxford)
"De racismo cordial e velado não temos nada"
O rolezinho é um evento de jovens da periferia que se reúnem para passear nos shoppings das cidades, cantar funk e se divertir. Em grupo, os jovens da periferia sempre foram aos shoppings. Não é um processo novo, a não ser em sua dimensão e intencionalidade. Mas o rolezinho hoje é muito mais do que isso: é um dos mais importantes fenômenos da sociedade brasileira, não pelo evento em si, mas pelo seu poder de reação, entre amor e ódio. Poucas vezes tivemos um momento tão especial para pensar o Brasil como agora por tudo que isso traz à tona.
É muito difícil dizer se são protestos conscientes. De alguma forma todos são. Há uma reinvindicação clara de ocupar espaços urbanos privilegiados, de marcar presença. É um basta na invisibilidade. Toda a marcha, em maior ou menor medida, é uma reivindicação ao “direito à cidade”, como diria o filósofo francês Henri Lefebvre.
É um evento político consciente que tem relação com outras práticas da periferia, como as pichações, que tem por objetivo marcar os espaços e transmitir uma mensagem. Mas o grau da intencionalidade é impossível definir: ele varia de grupo para grupo, de cidade para a cidade.
O resultado político do rolezinho, no entanto, é muito interessante, seja pelo ponto de vista de como ele reflete a sociedade brasileira, seja como esse reflexo volta para os grupos, que se vão dando conta do tremendo papel político que desempenham. É evento vinculado ao culto ao consumo de ostentação. Nesse sentido, é importante evitar romantizações de que se trata de um evento de luta de classes de esquerda. Por outro lado, o resultado disso se assemelha a um processo muito semelhante, em que as camadas populares descem o morro e tomam conta de espaços que lhes foram negados.
Ai então a sociedade reage, com raiva e rancor. A periferia sente na pele a exclusão, sente que não é benvinda e assim vai tomando cada vez mais conta de seu papel político.
A programação desses jovens não é nada novo também. Pelo Orkut ou pelo Facebook, jovens da periferia sempre se reuniram para passear, como acontecia no caso dos “bondes” que, pelo Orkut, se encontravam nos shoppings e nas praças. Eles se reúnem porque isso faz parte dos processos de pertencimento peculiares à cultura juvenil de grupos urbanos.
Se levarmos em consideração que o rolezinho é um processo e não algo novo, fica difícil perceber relação direta com os eventos do ano passado. No entanto, é claro que essa atmosfera de um Brasil injusto, que não pode mais se calar, acaba afetando e dando uma nova dimensão ao fenômeno. Ele vem a calhar em um momento em que a sociedade brasileira está se dividindo. De um lado, uma parte da população tem se revelado preconceituosa, racial e socialmente, e vem a pedir maior repressão (infelizmente essa massa vem de todas as classes sociais). Isso não é novo. Apenas isso está ficando evidente para mostrar ao mundo que de racismo cordial e velado não temos nada: temos um sistema cruel e perverso.
De outro lado, onde eu acredito que está a grande maioria da população, tem uma parte esperançosa, cansada e sedenta por democracia. Essa parte é a mesma que apanhou da polícia em junho de 2013, que defende as populações indígenas, que é contra as remoções forçadas da Copa e que, finalmente, entende que os jovens da periferia tem o direito de ir e vir.
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