15 Janeiro 2014
"A realização de megaeventos, mesmo a Copa, não é uma espécie de maldição, mas poderia ter sido a oportunidade para retirar velhos dirigentes esportivos do poder, impulsionar o esporte de base e, quem sabe, ter metrópoles mais desfrutáveis — ou menos doentes. Não se fez isso, contudo. E justamente por ter se optado por outro caminho, quando poderia ser diferente, é que aqui estamos — e comprova o quanto a situação, em verdade, é grave", escreve Hugo Albuquerque, jurista e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, em artigo publicado por Uninomade, 10-01-2014.
Eis o artigo.
O ano de 2014 mal começou e um tema já está afirmado: a Copa do Mundo. Mas não como em outros anos, quando a Copa era um assunto de futebol ou, no máximo, da economia e da política do futebol. Agora, a Copa será no Brasil. E antecede a realização dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. A última vez em que vimos algo parecido foi em 1994 e 1996, quando os Estados Unidos, no seu auge, realizaram os dois megaeventos no intervalo de dois anos. E junto com a Copa deste ano, veio um discurso: a Copa tem de acontecer, a qualquer custo. Como o Brasil poderá ser levado a sério e não conseguir realizar a Copa?
A Copa do Mundo, sem embargo, é um dos grandes projetos do Brasil Maior. E o Brasil Maior, por seu turno, talvez seja o derradeiro, e mais bem acabado, plano infalível da nossa tradição positivista. Sua finalidade seria converter nossos brasis em um “país sério”. País bom é país sério, sisudo e sóbrio, pois só assim nos equiparamos ao topo da civilização. Precisamos viver de trabalhar, mostrar a nossa resignação face ao labor. Precisamos ser sócios, mas sócios enquanto homens de negócio. Mesm, o futebol, dos mais democráticos e exuberantes produtos do ócio criativo nacional, precisa se adaptar aos negócios para ser homologado e aceito pela Casa Grande.
Em terra de Sociólogo-Rei, é hora de propor uma Ociologia. E Ociologia é ciência que dá conta das funções decorrentes de um desentendido ontológico: desde o advento do positivismo, com a ascensão da República, precisamos competir com as nações “desenvolvidas” copiando o seu modelo, fazendo uma apologia reversa que deu na nossa autocolonização. O ócio, pois, tornou-se negativo e o neg-ócio, uma negação própria, tornou-se positivo, inclusive e sobretudo num sentido moral. O resultado prático é o desassossego que nos acomete: o trânsito e a poluição são sinais do “progresso”, o trabalho incessante igualmente, os ternos e as gravatas sob o Sol de 40 ºC se achamos ruim, o problema é nosso…
A criminalização do sossego, do trabalhar (só o suficiente) para viver, criminalizou junto de si os bons e os livres: os índios, os malandros, os ébrios, os loucos, os quilombolas e todos aqueles que, não por acaso, sabiam que ser livre é ter liberdade atual; mudar as coordenadas — e não ter só o direito de se mover segundo elas. São todos aqueles que sabem que a liberdade ou é feita de carne ou é prisão a céu aberto.
Aí voltamos ao nobre esporte bretão: de diversão da aristocracia em seus clubes para esporte das multidões até, vejamos só, só ser readmitido nos almoços de domingo na medida em que provou sua função negocial — divertir o povo que trabalha, depois, gerar renda, “movimentar a economia”. Aquilo que era nobre foi subvertido, se tornou espaço de negros, rejeitados, loucos para, no último estágio, converter-se em locus da ascensão social (e racial) homologada.
É no terceiro estágio da arte política brasileira que se encontra a Copa do Mundo no Brasil. O que dizer do terror político light da necessidade da Copa sair — senão, crianças, não seremos levados a sério fora daqui — ou da guerra psicológica garantida às custas das tropas de Dilma, dos aviões robô de espionagem, da tropa de choque física ou da virtual — que sugere a Abin para realizar a repressão, como se, na falta de algo melhor, o velho SNI pudesse se tornar a nossa KGB.
Nada disso, no entanto, é fruto de uma desgraça transcendente, um maldição causada pela nossa simples escolha como país sede. Nem isso cabe à decisão política que nos levou a disputar as nomeações. Muitas vezes o grito antiCopa cai em superstições: à direita, o erro tenha sido tentar fazer um povo preguiçoso e inepto realizar algo de país desenvolvido, enquanto à esquerda, teria sido se deixar corromper pelo mal que vem de fora ou, quem sabe, não deveríamos ter gasto dinheiro público nisso (e, quem sabe, estaríamos atrapalhando a atividade negocial dos trabalhadores). Ledo engano, pois.
O ponto está além do ufanismo e da síndrome de vira-latas, ambas as faces da mesma moeda. A realização de megaeventos, mesmo a Copa, não é uma espécie de maldição, mas poderia ter sido a oportunidade para retirar velhos dirigentes esportivos do poder, impulsionar o esporte de base e, quem sabe, ter metrópoles mais desfrutáveis — ou menos doentes. Não se fez isso, contudo. E justamente por ter se optado por outro caminho, quando poderia ser diferente, é que aqui estamos — e comprova o quanto a situação, em verdade, é grave.
Todo dinheiro é dinheiro comum, representação monetária do valor. Pouco importa o uso de dinheiro público ou privado. A questão não está no seu uso em si, mas na sua aplicação — isto é, se sua reconversão se abre num ciclo que nos dê tempo de vida em vez de rouba-lo cada vez mais. Hoje, a especulação imobiliária resultante dos megaeventos, numa política deliberada, leva ao aumento dos aluguéis e dos valores imobiliários; a maneira como os proprietários arrecadam com a escassez de habitação é, por seu turno, parte desse fabuloso roubo: é preciso mais tempo de trabalho por dia para ter onde morar, mais tempo na casa dos pais até a autonomia.
O #NãoVaiTerCopa dos manifestantes é, de longe, o menor dos problemas para os organizadores do torneio e seus potenciais beneficiários. Se há risco de não haver Copa neste momento, ironicamente, isso se deve aos motivos errados: não somos uma Munique, na qual houve suficiente honestidade para votar — e rejeitar — a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno, mas um país no qual o próprio oligopólio de empreiteiras responsável pelas obras é quem as ameaça, atrasando sua finalização. Não que isso esvazie o potencial de luta e a capacidade dos comitês populares da Copa e demais movimentos, como 2013 ensinou — nem que obrigue o “não vai ter Copa” a ser escrito em uma outra gramática que não a do realismo político, aquele pensar que só concebe o mundo segundo a homologação da realeza.
Fosse isso tudo um ato político e, certamente, os inimigos e a revolta se voltariam para outros lugares. Mas não é, são só negócios, nada pessoal. E o futebol está no olho do furacão, no papel de chave e calabouço do ethos tupiniquim: sua potência avassaladora de reunir multidões, abarcar tantas diferenças e instaurar um sabático como regra geral será capaz de dar conta da armadilha onde ele está preso? Seja como for, o clima de ame o Brasil ou deixe-o do breve 2014 precisa ser posto em xeque.
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Brazil nos ame ou nos deixe nesta Copa. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU