14 Janeiro 2014
"O cenário para 2014 é, a um só tempo, maravilhoso e inquietante. Renovadas formas de organização, debate, deliberação e ação emergem nas ágoras improvisadas em escadarias e largos onde a multidão toma a palavra com a coragem de dizer a verdade: do calvário de Amarildo até o trem sempre enguiçado; da tragédia das enchentes até o apartheid dos templos de consumo, agora desafiados pelos "rolezinhos". Os pobres ousam saber e sabem ousar", avaliam Adriano Piliatti, professor de direito constitucional da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e Giuseppe Cocco, doutor em história social pela Universidade de Paris, professor titular de teoria política da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 14-01-2014.
Eis o artigo.
Em junho de 2013, a "terra brasilis" tremeu, sem que ninguém o tivesse previsto. Mas, já havia algum tempo, o ranger das placas tectônicas da "política nacional" apontava a emergência do magma jovem e indomável que inundou as ruas e as fez viver.
Os megaeventos tinham feito das cidades um negócio para as elites de sempre; o Minha Casa, Minha Vida foi usado para remover pobres para as periferias; a "pacificação" apenas reconfigurou o regime de terror das polícias contra os pobres.
Dezembro findou indicando que o ano iniciado no outono subverteu até o calendário e não terminará com a chegada do verão. Os tremores não cessaram: deixaram fraturas duradouras no solo das metrópoles e na arquitetura da polis. A predação das cidades e o falseamento da representação foram estruturalmente postos em questão. As ruas tornaram-se territórios irrenunciáveis de luta, "sherwoods" que escapam à privatização de tudo.
O cenário para 2014 é, a um só tempo, maravilhoso e inquietante. Renovadas formas de organização, debate, deliberação e ação emergem nas ágoras improvisadas em escadarias e largos onde a multidão toma a palavra com a coragem de dizer a verdade: do calvário de Amarildo até o trem sempre enguiçado; da tragédia das enchentes até o apartheid dos templos de consumo, agora desafiados pelos "rolezinhos". Os pobres ousam saber e sabem ousar.
O poder responde tornando o apartheid explícito: proibição judicial e truculência policial, e isso logo depois da hipócrita sacralização de Mandela. Mas, como em junho, a repressão só fará o movimento se propagar. Os jovens que circulam pelos shoppings nos dizem que, para sermos livres, precisamos estar e agir juntos na polis. E estar juntos implica que o pressuposto da liberdade seja a igualdade, a igualdade não como aplicação de um critério abstrato de justiça, mas a justiça como constituição da liberdade.
A escravidão de fato dos negros, das mulheres, dos índios e dos pobres no Brasil persiste porque eles não são iguais e, pois, não são realmente livres. Nas palavras de Hannah Arendt: "A isonomia não significa que todos são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política".
Quantas ironias ouvimos sobre a horizontalidade exacerbada do movimento? Oras, construir essa horizontalidade é condição necessária para dar conteúdo à liberdade: relacionar-se entre iguais na publicidade da ágora. Mais do que isso, pela primeira vez o movimento conseguiu mostrar que o horizonte do aprofundamento democrático implica na conquista do direito à política que os pobres das favelas, subúrbios e periferias não têm.
Já nos gabinetes, intelectuais blasés "pontificam" na desqualificação dos movimentos, deslembrados ou ignorantes de que pontificar é "fazer pontes", não dinamitá-las; é reduzir distâncias, não produzi-las.
Atuam como Unidades de Polícia do Pensamento: criminalizam autores e conceitos e, assim, ajudam a "pacificar" o debate, legitimando a repressão. Pois essa foi a principal resposta dos poderes "públicos" à nova brecha democrática: entregar a "mediação" do conflito à truculência policial. Não é fácil, porém, repetir "no asfalto" a rotina de terror que o Estado (sob qualquer governo) impõe a favelas e periferias. No Rio, sete meses de manifestações e enfrentamentos de rua mostram que, quando é preciso, a polícia atenua sua histórica brutalidade.
Foram os "black blocs" que mantiveram a brecha democrática aberta contra a hedionda reiteração da guerra do Estado contra os pobres. A multidão continua nas ruas, redes e shoppings. Mas ainda há tempo para os poderes constituídos, sobretudo o governo federal, reconhecerem a potência da nova etapa democrática. Isso é o melhor que podemos desejar. Feliz ano "novo"!
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