07 Dezembro 2013
O último ato importante do Papa Bergoglio foi a publicação do questionário enviado às dioceses de todo o mundo em preparação ao Sínodo Extraordinário sobre a família, que ocorrerá em Roma em outubro de 2014 e do qual participarão pela primeira vez (em homenagem à colegialidade) todos os presidentes das 114 Conferências Episcopais nacionais do mundo. A "novidade" desse modo de proceder é acima de tudo metodológica.
A análise é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado na revista Rocca, n. 23, 01-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A pouco mais de sete meses da eleição, o Papa Francisco (ou, melhor, do novo bispo de Roma, para usar a fórmula predileta dele) não deixa de surpreender. Já são muitíssimas as intervenções, feitas com os gestos e com as palavras (mas também – não o esqueçamos – com precisas decisões de governo), que marcaram com uma clara marca inovadora o seu pontificado.
A opção preferencial pelos pobres e o exercício da misericórdia com relação a muitas situações difíceis que a humanidade hoje experimenta são as características qualificadoras da sua ação pastoral de carimbo puramente evangélico, que envolve amplamente crentes e não crentes, ressuscitando a esperança em um mundo atravessado por uma profunda crise, não só econômica e social, mas também (e principalmente) cultural e moral, e afligido, justamente por isso, pelo medo do futuro.
O último ato importante do Papa Bergoglio, que não deixou de suscitar reações vivas e geralmente positivas no âmbito da opinião pública (com relação ao papa, também não faltam, no entanto, ao contrário, vão se multiplicando posições de dissenso nos ambientes da conservação eclesial e da direita política), foi a publicação (antecipada por algumas agências e, depois, fornecida oficialmente pelos órgãos da Santa Sé) do questionário enviado às dioceses de todo o mundo em preparação ao Sínodo Extraordinário sobre a família, que ocorrerá em Roma em outubro de 2014 e do qual participarão pela primeira vez (em homenagem à colegialidade) todos os presidentes das 114 Conferências Episcopais nacionais do mundo.
Do Instrumentum laboris ao questionário
A "novidade" desse modo de proceder é acima de tudo metodológica. Os sínodos, até agora celebrados, depois do Vaticano II, sempre foram precedidos pela publicação de um amplo e detalhado documento denominado Instrumentum laboris, destinado aos bispos, e particularmente àqueles designados para participar, além dos peritos e observadores convidados, que repropunha as linhas fundamentais da doutrina da Igreja em torno do tema escolhido como objeto da cúpula sinodal e continha algumas perguntas sobre questões em aberto, de caráter sobretudo pastoral, que deviam ser objeto de discussão e de debate.
Ora, à parte da restrição do campo a apenas o âmbito dos bispos e dos especialistas, em particular dos participantes dos trabalhos (que, certamente, tinham a oportunidade de consultar, se quisessem, sacerdotes e leigos), foram objeto de reflexão simplesmente alguns temas que diziam respeito à aplicação da doutrina tradicional às novas situações ou, no melhor dos casos, à identificação de pistas eficazes de caráter pastoral.
A passagem ao questionário, por isso, constitui uma verdadeira inversão de método. Não se trata, de fato, de proceder de cima, de modo dedutivo, reafirmando os princípios de sempre e dispondo-se a enfrentar, a partir deles, os problemas que estão emergindo da realidade. Trata-se, ao invés, de partir de baixo, de um conhecimento aprofundado da realidade, abrindo espaço, assim, a uma consulta de base, voltada a detectar o que as comunidades cristãs e, em sentido mais amplo, os homens de boa vontade pensam, para se interrogar seriamente sobre como organizar a ação pastoral, isto é, sobre como tornar atual o anúncio evangélico, de modo a alcançar a consciência do homem contemporâneo.
A novidade consiste no compromisso de ouvir acima de tudo o povo de Deus na sua totalidade – clero, religiosos e leigos – colocando em ação, desse modo, a eclesiologia do Concílio, que destacou com força a corresponsabilidade de todos os fiéis na construção da Igreja e o papel específico e fundamental dos leigos na abertura da Igreja ao mundo. A séria consideração do que se registra nas comunidades cristãs em termos de crenças e de costumes, por isso, não tem apenas um significado sociológico, embora importantes. Ela responde, mais profundamente, a uma instância teológica, a da recepção do sensus fidelium, que é um elemento essencial que o magistério não pode ignorar no exercício das próprias funções doutrinais e pastorais.
Os conteúdos do questionário
Outro dado de grande interesse – sem dúvida, o mais chamativo e amplamente comentado pela mídia por causa dos imediatos reflexos sobre a opinião pública – diz respeito ao conteúdo do questionário. As 38 perguntas, subdivididas em nove seções, abordam um amplo espectro de questões relacionadas com o desenvolvimento da vida matrimonial e familiar, não evitando os temas mais prementes, sem nenhuma reticência e com uma linguagem direta, nada curial.
A preocupação que transparece a partir da leitura do questionário é principalmente a da transmissão da fé, ou seja, da identificação dos caminhos para uma renovada evangelização do matrimônio cristão, do seu significado sacramental e dos valores conaturais a ela. O Papa Francisco está consciente – e explicita isso continuamente nos seus discursos, sobretudo na reflexão que ele desenvolve diariamente através das homilias de Santa Marta – de que a situação de marcante secularismo em que vivemos acabou ofuscando, até mesmo no mundo dos batizados que têm acesso ao sacramento do matrimônio, a consciência do significado que ele reveste e dos deveres que dele decorrem.
O compromisso prioritário das comunidades cristãs, portanto – como evidenciam as primeiras seções do questionário –, é o de restituir credibilidade ao matrimônio cristão e de alimentar a vida espiritual dos casais e das famílias que fazem referência a ele, para que deem testemunho do amor de Deus que se faz presente na história dos homens mediante a experiência do seu amor.
Mas o questionário não deixar de focar também, com grande realismo, alguns pontos críticos da vida matrimonial e familiar, próprios da situação atual. Contracepção, casais de fato, hetero e homossexuais, coabitação ad experimentum, relações sexuais pré-matrimoniais, comunhão aos divorciados em segunda união são algumas das questões colocadas sobre a mesa; questões delicadas – como é fácil intuir – cuja relevância é particularmente consistente hoje e que não podem (e não devem) ser evitadas, portanto, no plano pastoral.
Acima de tudo, é significativo o modo pelo qual as perguntas são construídas, seja porque a ênfase é posta sobretudo no anúncio da misericórdia de Deus (veja-se a pergunta sobre os separados e os divorciados em segunda união), seja porque a atenção privilegiada é aos sujeitos fracos, em particular as crianças, como aparece com clareza em uma das perguntas (nada menos do que quatro) relacionadas com as "uniões de pessoas do mesmo sexo".
Não falta, por fim- e esse também é um dado de novidade inegável –, a referência ao juízo sobre a legislação civil, especialmente onde está em jogo o reconhecimento das uniões de fato homossexuais: "Qual é – pergunta o questionário – a atitude das Igrejas particulares e locais, quer diante do Estado civil promotor de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, quer perante as pessoas envolvidas neste tipo de união?". A pergunta assim feita, que tem como objetivo registrar os pareceres das diversas Igrejas locais, parece reconhecer implicitamente a complexidade de um juízo, o da legislação civil, que, embora reflita a situação de uma sociedade democrática e pluralista, certamente não pode assumir diretamente a consideração ética própria de uma religião – da católica, por exemplo – ou de uma ideologia. Mas, sem renunciar a fazer valer a instância ética, deve retraçá-la, porém, na possível convergência em torno de um denominador comum compartilhado, as diversas posições éticas presentes na sociedade.
O sonho do cardeal Martini vai se tornar realidade?
Esse último importante ato do Papa Francisco parece confirmar, portanto, a linha de conduta inovadora que marcou desde o início o seu pontificado. A perfeita sinergia de gestos, palavras e atos de governo torna transparente a escolha inequívoca de uma nova diretriz de marcha, destinada a marcar uma reviravolta epocal na vida da Igreja.
O sonho do cardeal Martini, que, em uma das últimas entrevistas, denunciava com sofrimento o atraso da Igreja com relação às transformações em curso na sociedade, chegando até a falar de uma lacuna de nada menos do que 200 anos, vai se tornar realidade? É muito cedo para dizer.
Mas é certo que as questões postas em debate por meio do questionário do Sínodo Extraordinário do próximo ano são as mesmas as quais ele repetidamente aludiu nos anos do seu episcopado em Milão e para as quais desejava justamente a celebração de um Sínodo extraordinário, se não até (mas ele nunca se expressou oficialmente sobre isso) de um novo Concílio.
Só resta ficar na expectativa dos trabalhos sinodais para verificar o quanto das preocupações pastorais do Papa Francisco será acolhido. Em todo caso, o que parece bem estabelecido é o fato de que se respira hoje na Igreja um clima novo e cheio de expectativa. A abertura decidida à sinodalidade como forma de condução da Igreja em todos os níveis (e por isso não só como exercício da colegialidade episcopal) – o destino do questionário, a esse respeito, é um sinal eloquente – e a capacidade de imergir profundamente no coração das vicissitudes humanas, a partir das quais se torna mais imediatamente transparente a fragilidade criatural e o peso do pecado e do sofrimento para anunciar a misericórdia de Deus, são igualmente sinais de um retorno ao espírito do Concílio, repetidamente proposto pelo Papa Francisco, além disso, como traço seguro e irrenunciável do caminho da Igreja de hoje.
Parecem voltar à atualidade as palavras contra os "profetas da desgraça" com as quais o Papa João XXIII abria, há 50 anos, a cúpula conciliar, e parece reaparecer, depois de uma temporada incerta e não isenta de tendências involutivas, uma renovada e promissora primavera.
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O questionário por uma Igreja viva. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU