03 Dezembro 2013
Quantos autores, muitas vezes mais escritores do que filósofos, se assomaram ou, melhor, se esforçaram para penetrar e entender as contradições do século XIX, do Anjo da história, de Klee, às ruínas de Eliot, às pragas de Camus. Pouco antes de morrer, Simone Weil se dizia pronta para abrir espaço para Deus, "que se serve de qualquer coisa para que se pratique a recuperação dos dejetos". Justamente ao tema dos dejetos e dos resíduos da história, Gianluca Cuozzo, professor de filosofia teórica da Universidade de Turim, dedica um livro intenso, recentemente lançado pela Moretti & Vitali, com o título Filosofia delle cose ultime [Filosofia das coisas últimas] (184 páginas).
A reportagem é de Roberto Righetto, publicada no jornal Avvenire, 28-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Eu começaria com uma frase que você cita de Bauman: "Os coletores de imundícies são os heróis não celebrados da modernidade". O nosso horizonte é realmente o de um mundo dominado pelas suas próprias escórias?
A nossa civilização é caracterizada por vistosos fracassos, que se traduzem em escórias de vários tipos: acima de tudo, objetuais, como o lixo imundo no centro das considerações de Bauman e Saviano; depois também naturais, no sentido daqueles restos obscenos de natureza, apodrecida e poluída, à qual o homem reduz a Terra como resultado das suas atividades produtivas; mas também morais e culturais, se é verdade que a Itália, por exemplo, está entre os últimos países do mundo na promoção da cultura e na proteção do patrimônio histórico-artístico; e, não por último, humanas: é cada vez mais evidente como a globalização está na origem de um processo de acumulação de capitais, por um lado, e de marginalização cruel dos pobres, de outro.
Fazendo referência também a alguns escritores contemporâneos (penso em Paul Auster e Don DeLillo), tudo isso me levou a uma investigação filosófica do conceito de "resto" e de "residual": a nossa sociedade produz exclusão e resíduos de todos os tipos, objetuais e espirituais. Hoje estamos rodeados pelas escórias dos nossos projetos de ordem e de bem-estar: Wall-E, o robozinho do filme de animação homônimo que acumula resíduos sobre resíduos em um mundo devastado, é o símbolo do presente. Algo de decisivo escapou à suposta marcha triunfal rumo à realização da sociedade hipertecnológica e governada da economia financeira. A minha discussão é pessimista, mas não derrotista. O próprio Wall-E, que recolhe objetos obsoletos e abandonados, é o símbolo dessa conversão do luto na esperança: um outro mundo ainda é possível, e justamente a partir das escórias do que resta.
O Papa Francisco também insiste muito nos seus discursos na "cultura do desperdício", que caracteriza a sociedade contemporânea. Você mesmo, na sua análise, não parece ignorar, no entanto, a possibilidade de uma redenção, entre utopia e salvação. Onde é possível entrevê-la?
O Papa Francisco, no fato de ser – perdoe-me a expressão – "diversamente papa", chamou a atenção para um tema decisivo: a nossa cultura é do desperdício. É uma sociedade midiática e "vitrinizada", cada vez mais semelhante a uma reedição tecnológica do País de Bengodi [lugar imaginário da obra de Giovanni Boccaccio], e se fundamenta em uma estratégia da exclusão e da reificação. Como sair dessa situação?
Hoje, os grandes projetos utópicos parecem totalmente inadequados. Pensar em uma via salvífica deve fazer referência a algo diferente. Eu acho que é justamente o desperdício que sugere essa alternativa: pensar o residual até o fim, com uma atitude feita de piedade e de contemplação devota, nos leva a valorizar as nossas mais íntimas aspirações à felicidade, indo muito além do conceito de bem-estar estabelecido. Os restos, em última análise, testemunham o não cumprido: tudo em que esperamos e que ainda jaz sepultado – como uma semente preciosa e pronta para germinar – debaixo das escórias produzidas pelos nossos reiterados fracassos. Há como que o lembrete bíblico nesse pensamento: "Os últimos serão os primeiros" (Mateus 20, 16).
É preciso reacender o potencial salvífico contida nos resíduos, antes que o mundo se transforme no "cemitério das oportunidades perdidas", como também diz Bauman.
No rastro de Löwith e de tantos outros, você critica a ideologia do progresso, que, além disso, a longa sequência de horrores do século XIX colocou fortemente em dúvida. Mas é realmente uma categoria para se esquecer? Não há necessidade de redescobrir uma filosofia da história?
Sim, é preciso se comprometer para idealizar uma nova filosofia da história, sem a qual o homem está desprovido de toda bússola para se orientar entre as ondas do acontecer histórico. Só que essa filosofia deve ser outra coisa bem diferente da crença no progresso. Acima de tudo, a nova filosofia da história deve ser, ao mesmo tempo, uma nova filosofia da natureza: uma natureza que hoje é pequena e feia, mas que, no fundo, continua sendo o pressuposto do nosso existir. Deve ser redescoberto o conceito de limite – na verdade, uma das noções menos visitadas pela nossa civilização dos restos e do desperdício.
Há um limite para tudo: para a economia, que produz riqueza em um contexto de recursos finito; para a técnica, que não pode e não deve se substituir a outras formas de saber tradicionais (como filosofia e a teologia); para o consumo, que se fundamentam em um princípio de insatisfação crônica a ponto de gerar frustrações; finalmente, para a ficção midiática em que estamos imersos. O filósofo da história deverá iniciar a reflexão a partir dessa "babilônia" dos dejetos: é preciso pegá-los, citando Baudelaire, "como um avarento um tesouro, as imundícies [...] ruminadas pela divindade da Indústria", com a esperança de que eles se tornem o fundamento de uma sociedade mais justa.
Você realiza uma vasta digressão da literatura ao cinema sobre o tema apocalíptico. Que romances e filmes mais encarnam a sua perspectiva?
Os dois romances de Auster e DeLillo, No país das últimas coisas e Submundo. No primeiro, dois personagens oferecem elementos para uma reflexão em contraste com a fé no progresso: Bing Nathan e o Homem de Lata. Bing Nathan é o idealizador do Hospital das coisas quebradas, onde se cuida desses objetos – velhos rádios de válvula, máquinas de escrever, gramofones, brinquedos de mola – que foram varridos pela economia do "usa e joga fora". Seu sonho é de forjar uma nova realidade sobre as ruínas de um mundo que se arruinou.
O Homem de Lata, ao invés, aparece no fim do romance: é um mendigo que vive do que ele encontra nas lixeiras, quase testemunhando que, entre os resíduos, ainda é possível entrever aquela terra prometida desde sempre desejada nos nossos consumos de mercadorias e gadgets da moda.
E entre os filmes?
Depois do já citado Wall-E, do qual o recente Elysium é apenas uma cópia empalidecida, eu não gostaria de me esquecer de Blade Runner, que ainda manifesta aquela inspiração teológica que é típica dos romances do grande escritor norte-americano Philip K. Dick. Além do mundo dos replicantes, nesse filme é magistralmente descrita a nossa dependência alucinada no grande espetáculo da ficção – uma espécie de reedição da caverna platônica transformada em TV, rádio e comerciais promocionais de todos os tipos.
O livro se intitula "A filosofia das coisas últimas", e não por acaso, inicialmente, você cita René Girard e as três formas de apocalipse (destruição atômica, catástrofe ecológica e manipulações genéticas) que você delineia. Do ponto de vista teológico, que autores você sente como mais afins?
Não vou citar um teólogo propriamente dito, mas sim um filósofo muito caro para mim: Walter Benjamin, para o qual não haverá futuro para a humanidade se não formos capazes de redescobrir, sob as ruínas dos nossos fracassos, um aviso decisivo com relação aos nossos projetos do presente e do futuro imediato. A salvação, eis o coração teológico do pensamento benjaminiano, é o objeto de uma "memória profética": de fato, a esperança resplandece no exato momento em que nos voltamos para o passado, prontos para captar, entre os destroços que a história joga aos nossos pés, uma chance totalmente nova de redenção.
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Uma teologia dos resíduos. Entrevista com Gianluca Cuozzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU