30 Novembro 2013
Diferentemente do que os fiéis mostram crer, eu não acredito que as extemporâneas investidas do Papa Francisco sejam uma tentativa de reforma da Igreja. Ao invés, eu acho que são o reflexo de uma certa e humaníssima inclinação pessoal, e a manifestação da divisão dos despojos por parte da facção vencedora que elegeu o papa.
A opinião é do cientista político e jornalista italiano Piero Ostellino, ex-diretor do jornal Corriere della Sera, fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Luigi Einaudi, de Turim, e ex-aluno de Norberto Bobbio. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 29-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Papa Francisco fez duas declarações em (aparente) contraste com a teologia e a história da Igreja de Roma. A primeira – "Quem sou eu para julgar?" – põe em discussão, para além da própria autoridade pontifícia e do sacramento da confissão, o papel de mediação da hierarquia eclesiástica entre fiéis e Deus que o catolicismo institucional constantemente sustentou, e reiterou, com o Concílio de Trento, depois que a Reforma Protestante o havia renegado.
A segunda – a atribuição à consciência individual da função de tribunal moral – repropõe a definição luterana de "sacerdócio universal dos crentes", que exclui a hierarquia eclesiástica como depositária e intérprete exclusiva da moral. Paolo Sarpi – padre, teólogo, espírito livre e testemunha que havia contado o Concílio [de Trento] de uma forma diferente à oficial – foi assassinado por um pistoleiro, provavelmente encomendado pela Igreja de Roma, que se considerava a sua única intérprete.
A chamada Reforma Católica, que nós chamamos de Contrarreforma, foi a solução que a hierarquia romana contrapôs à Reforma Protestante de Lutero, geradora dos primórdios do nascimento do Estado moderno. Ela incidiu, e continua incidindo, sobre o pensamento não só religioso, mas também civil e política dos italianos, impedindo-os de aceitar a Modernidade.
O Concílio de Trento faz par com o Concílio de Niceia (325 d.C.), onde foram aprovados, e votados por uma maioria (!), alguns dogmas: 1) a doutrina da consubstancialidade do Pai e do Filho; a negação de que o Filho é criado e que a sua existência é posterior ao Pai; e 2) o nascimento virginal de Cristo: "Jesus nasceu de Maria virgem", é a sentença do Concílio que foi transmitida; 3) a morte e a ressurreição de Cristo; a condenação, como herética, da doutrina de Ário (arianismo), que defendia que Jesus não tinha natureza divina como o Pai.
Esses são os precedentes. Mas o que me impressiona hoje é que não só o povo dos fiéis, mas também a parte secularizada e laica da Itália mostra não ter se dado conta da radicalidade das duas afirmações papais. E mesmo que eu não deveria ser autorizado – julgando-se pelas cartas que eu recebo de crentes que, com um refluxo contrarreformista, negam àqueles que não creem até mesmo o direito de escrever sobre questões da Igreja –, eu digo o que penso. Como agnóstico.
Eu não sou crente, mas (só) um "aspirante a crente" que atribui – em sintonia com Agostinho – à Graça divina o dom da Fé e, por isso, sem indultar ao fácil e otimista fideísmo, espera ser (eventualmente) tocado por ela e alcançar aquela Fé que, não por sua voluntária escolha, mas sim por evidente disposição de Deus criador, não tem. O meu modo de olhar para a relação entre religião e Igreja é o de quem não exclui a existência de Deus, mas também não acredita nela, porque "sabe que não sabe".
É o mesmo sentimento pelo qual eram animados os iluministas do século XVIII, quando, sem negar a existência de Deus, julgavam a Igreja do seu tempo como uma instituição histórica opressiva e responsável pelo obscurantismo de que a humanidade sofria. "Tem a coragem de pensar com a tua cabeça", recomendava Kant no célebre artigo sobre o Iluminismo.
Eu não sou um teólogo e nem tão irresponsável a ponto de querer imitar – depois de 500 anos! – Lutero e de presumir fundar uma nova teologia alternativa à da Igreja Romana. Sou apenas um liberal que segue o conselho de Kant de pensar com a própria cabeça; que desconfia de todo poder, incluindo o espiritual. Como liberal, me considero, cultural e eticamente, devedor da mensagem universalista de Jesus Cristo, que, assim como o liberalismo com o indivíduo, coloca a Pessoa no centro da fenomenologia social e política.
Mas, para mim, os representantes da Igreja também são aquele "lenho torto" que é o Homem histórico; "lenho torto" do qual seria ilusório pensar que se possa tirar algo reto só porque veste o hábito vermelho dos cardeais ou o branco do papa.
O conclave que elege o pontífice é, aos meus olhos – absit iniuria verbis – uma reunião de homens divididos em facções, uma em competição com a outra para a conquista do enorme poder, as "divisões do papa" de que falava Stalin, de interpretar e prescrever a própria ideia de doutrina à comunidade dos crentes, segundo a (contingente) conveniência de uma instituição secular. Em suma, se queremos dizer de uma forma laicamente dura, mas também com o respeito historicamente devido, o conclave é, aos meus olhos, uma espécie de "congresso de partido" (da Igreja) cujos trabalhos os seus protagonistas, em parcial justificação das próprias escolhas, dizem ser presididos por uma superestrutura ideal que eles chamam de Espírito Santo.
Diferentemente do que os fiéis mostram crer, eu não acredito, por isso, que as extemporâneas investidas do Papa Francisco sejam uma tentativa de reforma da Igreja. Ao invés, eu acho que são, além do reflexo de uma certa e humaníssima inclinação pessoal, a manifestação da divisão dos despojos por parte da facção vencedora que elegeu o papa. Além disso, elas estão testemunhando as mudanças que, pontualmente, ocorrem nas mais altas esferas do governo vaticano depois de cada eleição de pontífice. Não há nada de escandaloso – entendamo-nos –, mas também não há dúvida de que, em tal práxis, há um componente humano compreensível, e até justificável, e absolutamente não uma indução religiosa...
Em conclusão e em definitivo: eu considero que o mandato de Cristo a Pedro – "fundarás a minha Igreja" – se transformou ao longo dos séculos, com a sua formalização institucional, no domínio de alguns homens sobre outros homens, que não raramente se revelou feroz até. Na base – perdoem-me a expressão crua –de um "abuso de Deus", simétrico ao "abuso da razão", fruto da degeneração do racionalismo que produziu os totalitarismos do século XX. Eu não acredito que seja, por isso, nem blasfemo, nem escandaloso desejar a retomada da distinção entre religião e Igreja, refletindo sobre o que ela se tornou, por obra e por serviço daquele "lenho torto" atento ao próprio poder, que também são, goste-se ou não, os homens da Igreja.
Eu não acredito que se gere escândalo, por isso, ao defender que até mesmo o crente, que conta responsavelmente com o próprio livre-arbítrio, tem o direito de pensar com a própria cabeça e de recusar, eventualmente, certas prescrições impostas pelo domínio de uma Autoridade à qual, depois das nem sempre exemplares experiências do passado, seria difícil dar mais crédito do que o merecido por qualquer outra autoridade humana.
Eu quero acreditar que o aparecimento sobre o sólio pontifício desse singular jesuíta não é um acidente, mas sim uma "astúcia da história" ou, se quisermos, uma (feliz) manifestação da Providência. Graças à qual o bom Deus não nos é retratado como o juiz implacável, muito semelhante ao Homem, o "lenho torto da humanidade", por ser muito pouco cristãmente caridoso. Representação por muito tempo oferecida aos fiéis por uma Igreja muito terrena e muito atenta ao próprio poder, por ostentar um fundamento divino, e que, hoje, ao invés, se revela – finalmente! – pela boca do Papa Francisco, na sua infinita misericórdia.
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Aquelas palavras radicais do papa que talvez não mudarão a Igreja. Artigo de Piero Ostellino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU