29 Novembro 2013
Há o compromisso de mudar a Igreja profundamente – começando pelo próprio papado – e o convite a combater a lei do mais forte, "onde o poderoso engole o mais fraco". Há o apelo a parar "as guerras dentro do povo de Deus" (leia-se: no Vaticano) e o chamado a "uma reforma financeira que leve a ética em conta".
A reportagem é de Marco Ansaldo, publicada no jornal La Repubblica, 27-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O papa que "veio do fim do mundo" diz que agora "não se pode deixar as coisas como estão". E que "essa economia da exclusão e da desigualdade mata". Por isso, "devemos ouvir o clamor do pobre". E então Francisco reza "ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres".
Jorge Mario Bergoglio vira a página da Igreja, convida os fiéis e não crentes a cerrar fileiras contra as aberrações da sociedade e coloca, pela primeira vez, os pingos nos "is" sobre os pontos fundantes do pontificado a oito meses da sua eleição. E o faz com uma exortação apostólica, Evangelii gaudium, a primeira inteiramente de seu próprio punho depois da encíclica Lumen fidei, inspirada por Bento XVI. Um texto de 220 páginas, escrito diretamente em espanhol em agosto passado depois da viagem ao Rio de Janeiro e voltado, como quer o título, a "recuperar o frescor original do Evangelho".
Substancialmente, é um documento programático. Uma análise lúcida, impiedosa às vezes, do atual sistema econômico capitalista. Com um apelo vibrante pela paz dentro e fora da Igreja. Um escrito poderoso e ao mesmo tempo imbuído de humanidade, no qual a sensibilidade latino-americana do papa emerge com toda a sua evidência. Um trabalho que o L'Osservatore Romano define como uma "Magna Carta para a Igreja de hoje", embora escrito com um estilo coloquial e uma prosa envolvente.
Conversão do papado
"Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também em uma conversão do papado". É, talvez, a passagem mais forte e que se destina a provocar discussões. "Compete-me – escreve Francisco –, como Bispo de Roma, estar aberto às sugestões que se orientem a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao sentido que Jesus Cristo quis lhe dar e às necessidades atuais da evangelização. O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar 'uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova'. Avançamos pouco nesse sentido", é a dura crítica de Bergoglio.
O papado e as estruturas centrais da Igreja universal, continua, também "precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral". Porque "centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja". É necessária, portanto, "uma salutar descentralização". Além disso, são muitas as "guerras" no povo de Deus e nas diversas comunidades: "Quem queremos evangelizar com esses comportamentos?".
Ao contrário, "por todo o lado, as igrejas devem ter as portas abertas". De fato, o papa prefere "uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento". Portanto, é preciso uma "revolução da ternura". E evitar o clericalismo e o pessimismo estéril.
Economia tirana
"O papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética em favor do ser humano".
Mulheres e aborto
"Ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque 'o gênio feminino é necessário em todas as expressões da vida social'". Mas sobre o aborto "não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição". E para Bergoglio "não é opção progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana". O "não" ao aborto, explica, "está intimamente ligado à defesa de qualquer direito humano".
Bispos mais autônomos
"Ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que as conceba como sujeitos de atribuições concretas, incluindo também alguma autêntica autoridade doutrinal. Uma excessiva centralização, mais do que de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária".
Homilias mais breves
Que a paróquia, exorta Francisco em uma das passagens mais emocionantes, esteja "em contato com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura prolixa, separada das pessoas". E a homilia do sacerdote "deve ser breve e evitar que se pareça com uma palestra ou uma aula". Nem conter moralismos ou condenações. "Não pode ser um espetáculo de entretenimento, não responde à lógica dos recursos midiáticos".
A comunhão a divorciados
Francisco não pretende dizer "uma palavra definitiva" sobre os temas que ainda devem ser "objeto de estudo e de cuidadoso aprofundamento". Mas, sobre a comunhão aos divorciados em segunda união, ele indica uma direção que poderá seguida pelo próximo Sínodo Extraordinário: "A Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos, mas sim um generoso remédio e um alimento para os fracos".
Islã e judaísmo
A evangelização envolve o diálogo. E, para Bergoglio, o ecumenismo é um recurso imprescindível. "Diante de episódios de fundamentalismo violento", ele lembra que "o verdadeiro Islã e uma adequada interpretação do Alcorão se opõem a toda violência". E "a amizade com os filhos de Israel" faz parte da "vida dos discípulos de Jesus".
Páginas poéticas
Várias vezes, aqui e acolá no texto, encontram-se passagens densas e pontos ricos de poesia. Como este, perto do fim: "A nossa tristeza infinita só se cura com um infinito amor".
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''A pobreza não pode esperar''. O manifesto de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU