25 Outubro 2013
O hospital de campanha de Francisco que cura as feridas e aquece o coração dos homens é investido, de repente, de uma lufada de doutrina que sopra diretamente das salas do ex-Santo Ofício. Ao kairós da misericórdia de Bergoglio, são necessários pontos firmes, robustez teológico-sacramental, ao menos ao se ler o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Dom Gerhard Ludwig Müller.
A reportagem é de Matteo Matzuzzi, publicada no jornal Il Foglio, 24-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O tema, delicado, é o dos divorciados em segunda união, se se deve admiti-los aos sacramentos, particularmente a eucaristia. Pecadores que pedem uma segunda chance, depois do arrependimento. O papa jesuíta que assume o senso da medida pragmática do Samaritano tencionado a curar a alma do seu próximo, explica que "a Igreja é mãe, que deve ir cuidar dos feridos com misericórdia".
Afinal, "o Senhor não se cansa de perdoar", dele não se deve "ter medo, Ele sempre nos perdoa, é pura misericórdia", "a misericórdia de Jesus não é somente sentimento, ao contrário, é uma força que dá vida, que ressuscita o homem". E, além disso, Jesus é o nosso "advogado que nos defende sempre, até de nós mesmos e do nosso pecado", dizia ele em um dos seus primeiros Ângelus, logo após a Páscoa. Basta pedir-lhe perdão, em suma.
Mas a misericórdia também é condicionada, não tira o pecado, esclarece Müller. O perdão exige o arrependimento. "Outra tendência em favor da admissão dos divorciados em segunda união aos sacramentos é a que invoca o argumento de misericórdia. Porque Jesus mesmo se solidarizou com os sofredores, dando-lhes o seu amor misericordioso, a misericórdia seria, portanto, um sinal especial do autêntico seguimento. Isso é verdade, mas é um argumento frágil em matéria teológico-sacramental, até porque toda a ordem sacramental é exatamente obra da misericórdia divina e não pode ser revogada, apelando ao mesmo princípio que o sustenta", diz o guardião da ortodoxia católica.
Não se pode banalizar a misericórdia, dar-lhe uma interpretação errada: "Através daquilo que objetivamente soa como um falso apelo à misericórdia, incorre-se no risco da banalização da própria imagem de Deus, segundo a qual Deus não poderia fazer nada mais do que perdoar. Ao mistério de Deus pertencem, além de misericórdia, também a santidade e a justiça; se escondermos esses atributos de Deus e não levarmos a sério a realidade do pecado, não poderemos sequer mediar às pessoas a sua misericórdia".
E, de todos os modos, explica Müller, "pela íntima natureza dos sacramentos, a admissão a eles pelos divorciados em segunda união não é possível". Certamente, é preciso trabalhar na pastoral, é preciso acompanhar o caminho dessas pessoas "como uma comunidade de cura e de salvação". Só então é que pode chegar perdão para o pecado cometido.
Matrimônio, vítima da contemporaneidade
O prefeito do ex-Santo Ofício fala de cura, observando que o matrimônio, valor inegociável desclassificado a entidade menor de um pedaço, muitas vezes secularizado e vítima da "mentalidade contemporânea", que "influencia muitos cristãos", continua sendo indissolúvel mesmo na Igreja misericordiosa de Francisco. Apesar das aberturas e das brechas que já haviam levado a se falar de revolução.
O papa também pensou em criar alguma expectativa, na verdade, quando, falando no avião, de improviso e a milhares de metros acima da terra firme, em julho passado depois da semana que ele passou no Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, ele citava o exemplo da Igreja Ortodoxa, na qual, aos divorciados em segunda união, é dada "uma segunda possibilidade", permitindo a aproximação à comunhão.
"Eles seguem a teologia da economia, como a chamam. Eu acredito que esse problema deve ser estudado no marco da pastoral matrimonial", frisava Bergoglio, já levando a entender que esse seria o tema do Sínodo Extraordinário dos Bispos de 2014.
Mas do guardião da fé chega um fechamento também a essa possibilidade: a práxis admitida pelas Igrejas ortodoxas "não é coerente com a vontade de Deus, claramente expressa nas palavras de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimônio". Traduzindo, nada de comunhão, nem mesmo se houver arrependimento. A Tradição, dos Padres da Igreja em diante, até o Concílio com a constituição pastoral Gaudium et Spes, é clara: o matrimônio é a completa união corporal e espiritual entre homem e mulher, e a instituição estável que vem a se fundar não é dependente do arbítrio do homem.
Violar o pacto, romper o sacramento significa rejeitar a graça divina. Cometer pecado. Frases que se afastam do que o Papa Francisco dizia há apenas três meses, um fechamento que vem diretamente do guardião da fé católica, daquele Gerhard Ludwig Müller que certamente não pode ser acusado de antibergoglismo.
Afinal, ele, o ex-bispo de Regensburg, editor da opera omnia teológica de Joseph Ratzinger e chamado por este a Roma pouco mais de um ano atrás para se tornar o seu segundo sucessor no Santo Ofício, havia se tornado o alvo predileto dos tradicionalistas, nostálgicos e conservadores por causa das aberturas à Teologia da Libertação.
Foi Müller, "o ingênuo" (definição reiterada pelo cardeal arcebispo de Lima, Juan Luis Cipriani), que levou ao encontro de Francisco o teólogo Gustavo Gutiérrez, um dos pais da teologia nascida na América Latina, processada e condenada – ao menos em parte – no seu tempo pelo então cardeal Ratzinger. E também Müller – que, na edição atual do L'Osservatore Romano, publicou um artigo sobre memória e identidade na visão cristã da história – foi um dos primeiros homens da Cúria Romana submetida à obra de reestruturação por parte dos oito cardeais consultores a ser confirmada (não mais temporalmente, à espera de novas disposições) pelo papa.
E é nessa veste de guardiã da ortodoxia que o prefeito quer fazer clareza sobre o que ele define como "conceito problemático de consciência". Em uma das entrevistas concedidas nos últimos tempos, Francisco dizia que "ouvir e obedecer à consciência significa decidir-se diante do que é percebido como bem ou como mal. E nessa decisão está em jogo a bondade ou a maldade do nosso agir". Palavras que, relacionadas com a questão dos divorciados e dos sacramentos, pareciam significar uma abertura para a comunhão. Basta ouvir a consciência, confiar no seu primado, já que, em seu socorro, vem a casuística para dirimir a dúvida sobre se é certo seguir consciência ou a norma moral.
No seu artigo publicado no L'Osservatore Romano – que o jornal da Santa Sé apresentou como contribuição em vista do Sínodo Extraordinário sobre a Família que será aberto em um ano –, Müller esclarece como são as coisas: "Cada vez mais frequentemente, sugere-se que a decisão de se aproximar ou não à comunhão eucarística deve ser deixada à consciência pessoal dos divorciados em segunda união. Esse argumento, que se baseia em um conceito problemático de consciência, já foi rejeitado" há quase 20 anos pela Congregação para a Doutrina da Fé.
Em todo caso, especifica o titular do ex-Santo Ofício, "os fiéis são obrigados a verificar sempre na sua consciência se é possível receber a comunhão, possibilidade à qual a existência de um pecado grave não confessado sempre se opõe".
É bom ouvir a consciência, interrogar-se em profundidade, confessar-se. Mas, no fim, a última palavra não é nem pode ser a sua: "Se os divorciados em segunda união estão subjetivamente na convicção de consciência de que o matrimônio anterior não era válido, isso deve ser objetivamente demonstrado pela autoridade judiciária competente em matéria matrimonial".
E isso porque o matrimônio não é só uma questão entre homem e mulher, e entre eles e Deus, mas também realidade viva da Igreja. "É um sacramento, sobre cuja validade não somente o indivíduo por si mesmo, mas também a Igreja na qual ele está incorporado mediante a fé e o batismo devem decidir".
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