Por: Cesar Sanson | 05 Outubro 2013
"Estava claro para mim que ressurgia com força uma ‘onda’ anti-indígena na sociedade brasileira". A afirmação é de Márcio Meira em entrevista à Felipe Milanez da Carta Capital, 04-10-2013.
Márcio Meira é antropólogo do Museu Paraense Emilio Goeldi, com trabalho acadêmico no alto Rio Negro. Foi o mais longevo presidente da Funai, ocupando o cargo entre abril de 2007 a abril de 2012. Durante a sua gestão foi aprovada a construção da polêmica usina de Belo Monte, e também foi realizada a reforma da Funai, com um decreto de reestruturação em 2009, seguido de uma intensa mobilização dos índios contrário a reforma da forma como foi feita.
Foi durante a sua gestão que ocorreu a desintrusão da Terra Indígena raposa Serra do Sol, e também o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da demarcação da reserva. É nesse julgamento que o falecido o juiz Menezes Direito sugeriu em Plenário ao Tribunal adotar 19 "condicionantes" – e até hoje não está claro se essas condicionantes estavam restritas ao caso, como é o padrão jurídico, ou se assumem uma característica de uma "nova legislação", estendendo-se de forma universal. A questão tem sido utilizada pelos ruralistas para impedir demarcações em outras regiões, bastante distantes de Roraima, onde fica a Raposa Serra do Sol.
Segundo Meira, a “onda anti-indígena tem ver com o crescimento econômico acentuado dos setores primários da economia, com destaque para o agronegócio, nos últimos 15 anos e sua superlativa representação política". O agronegócio, diz Meira, "é predatório e tradicionalmente marcado pela grilagem de terras".
Eis a entrevista.
O que está acontecendo hoje, como explicar esse ataque aos direitos indígenas?
Há alguns anos, quando ainda era presidente da Funai, já estava claro para mim que ressurgia com força uma “onda” anti-indígena na sociedade brasileira, originada sobretudo nos herdeiros das velhas elites agrárias que promovem sua investida mais recente nos territórios do Centro Oeste e da Amazônia. Trata-se de uma narrativa produzida por esses setores sociais e econômicos (cuja cadeia produtiva vai muito além da atividade agropecuária stricto sensu) e reproduzida ad infinitum, inclusive pela grande mídia de que os índios e suas terras, que seriam “exageradas”, constituem um “entrave” para o desenvolvimento do país. Como ocorreu em outros momentos de nossa história, creio que essa onda tem a ver com o crescimento econômico acentuado dos setores primários da economia, com destaque para o agronegócio, nos últimos 15 anos e sua superlativa representação política no Congresso Nacional, no Judiciário e nos Executivos federal, estadual e municipal.
É verdade factual que o agronegócio brasileiro ou pelo menos a maior parte dele, é predatório e tradicionalmente marcado pela grilagem de terras. Para obter mais e mais lucros, quer agora avançar sobre terras públicas, sobretudo as Terras Indígenas. Basta ver o mapa mais recente do desmatamento da Amazônia: as “ilhas” de florestas cercadas pelas fazendas de gado ou pelo algodão e a soja, são majoritariamente formadas pelas Terras Indígenas. Na minha opinião, os ataques contra os direitos indígenas as suas terras tradicionais estão no centro desse recrudescimento porque elas estão “fora” do mercado: é sobre essas terras que se quer avançar agora e para isso, somente rasgando a Constituição. É por isso que também a FUNAI, responsável pelas demarcações conforme estabelecido na legislação, tem sido fortemente atacada por esses setores, dentro e fora do governo.
Qual a ameaça dessas mudanças legislativas (PEC 215, PLP 227) para o futuro?
Na prática, a ameaça é acabar com as demarcações, inclusive com a tentativa de “revisão” (obviamente para menos) de terras já demarcadas e homologadas. Imagine o Congresso ter que fazer todo o procedimento de demarcação? Não somente seria um absurdo jurídico – porque se trata de direito fundamental, portanto mexer nele é inconstitucional – como administrativo e mesmo prático, pois não há profissionais especializados nessa área no Senado ou na Câmara. É uma ameaça seríssima aos direitos indígenas, a pior desde a promulgação da Constituição há 25 anos. E merece uma reflexão das pessoas de boa fé, - mesmo aquelas que estão distantes dos povos indígenas ou tem pouco conhecimento sobre a agenda indigenista, - no sentido de se manifestarem em defesa dos direitos indígenas. Como as Terras Indígenas são patrimônio da União, são também de todos os brasileiros, e os índios são os maiores guardiões desse patrimônio constituído de florestas e outras paisagens naturais, na sua grande maioria bastante protegidas contra ações predatórias, ou seja, os índios e suas terras prestam um enorme serviço ao meio ambiente, cuja proteção é de interesse de toda a Nação.
Como esse processo de força contrário aos índios se tornou tão poderoso e influente?
Desde o final da década de 1990, com o passar dos anos, os segmentos anti-indígenas posicionados na sociedade brasileira, com destaque para os representantes do agronegócio, passaram a canalizar recursos econômicos, políticos e de mídia, no sentido de ocupar espaços de poder no país. A consequência desse processo político e econômico, que chamo de “onda” anti-indígena, já que se propaga e influencia outros setores da sociedade, é a cada vez maior presença relativa desses segmentos nas instâncias de poder do país, inclusive desproporcional ao seu tamanho em termos populacionais. Dessa forma, os governos, independentemente de suas colorações partidárias e suas “coalizões”, mesmo quando querem fazer cumprir os direitos indígenas (e também dos quilombolas, populações tradicionais, etc.), são permanentemente pressionados e muitas vezes tornados reféns dessas forças políticas, daí sua força e influência. Fato este que reforça, além de outros, a necessidade urgente de uma profunda reforma política no Brasil.
O que pode ser feito? Ou o que deveria ser feito no Brasil para mudar essa situação?
Os movimentos sociais, a sociedade civil e os políticos engajados com a causa indígena devem se mobilizar! E isso está sendo feito. Mas há na sociedade brasileira um gigantesco desconhecimento sobre os povos indígenas, o que leva não só ao preconceito, mas também à omissão com relação às práticas de violência cometidas contra esses povos. No médio e longo prazo, uma iniciativa que considero importante e urgente diz respeito à ampliação de políticas públicas, principalmente de educação e cultura, que levem mais e melhores informações sobre os indígenas para as crianças e jovens de todo o Brasil. Esta seria uma aposta num futuro no qual a diversidade cultural brasileira e a proteção ao meio ambiente, estabelecidos na Constituição, sejam efetivamente reconhecidos e respeitados em sua multiplicidade e beleza. Sem dúvida estas são as mais importantes características da Nação brasileira, e o que a diferencia positivamente no cenário internacional. Muito temos ainda a aprender com os povos indígenas do Brasil e isso deve começar por uma atitude de respeito e garantia dos seus direitos constitucionais. Uma mudança de valores.
Por que não conseguiu ir mais adiante enquanto esteve na presidência? Algum lamento ou alguma frustração?
Fui presidente por mais de cinco anos. Não guardo lamentos nem frustrações. Ocorre que a FUNAI é uma instituição pública que está permanentemente sob pressão de todos os lados, e todos os seus presidentes navegam em mares bravios. Não há calmaria na FUNAI. E correr contra a corrente às vezes impede a instituição de chegar aos seus objetivos e metas de forma rápida, o que exige dos seus dirigentes muita paciência e persistência. Tive a sorte e o privilégio de ter tido durante a minha gestão o apoio decisivo do ex-presidente Lula, que esteve várias vezes em diálogo direto com a FUNAI e os próprios indígenas, mediando conflitos e oferecendo soluções com sensibilidade e inteligência.
E alguma esperança de mudar a situação? Qual?
Creio sempre que o melhor é possível, mesmo com todos os obstáculos que existem pela frente, como os referidos acima. A maior esperança reside sempre nos próprios indígenas, sua enorme capacidade de resistência e luta que, aliás, têm garantido todas as conquistas que obtiveram ao longo das últimas décadas, para ficarmos só no período histórico mais recente. Uma dessas conquistas atuais foi a institucionalidade da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas - PNGATI, cujo decreto foi assinado em 2012. A meu ver, pode ser uma excelente oportunidade de consolidação das Terras Indígenas e de fortalecimento da autonomia, inclusive econômica, dos povos indígenas no Brasil.
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"Na minha gestão foram sete lideranças Guarani assassinadas". Entrevista com Marta Azevedo
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Uma onda anti-indígena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU