Por: Cesar Sanson | 04 Outubro 2013
Manifestações nacionais, que ocorrem até o dia 5, pretendem chamar a atenção para os recentes ataques aos direitos indígenas por parte do Congresso e do governo federal.
A reportagem é de Igor Ojeda e publicada por Repórter Brasil, 03-10-2013.
No próximo dia 5 de outubro a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada por muitos de “cidadã”, completa 25 anos. O texto, elaborado com o objetivo de passar uma borracha no período da ditadura civil-militar que se encerrava, é considerado avançado e garantidor de direitos, embora muitas vezes suas determinações não sejam respeitadas ou aplicadas.
A ameaça recente a um de seus artigos, porém, vai além do mero não cumprimento. A intenção é destruí-lo. Quem faz o alerta são os indígenas reunidos em torno da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que nesta semana realizam uma série de manifestações em protesto contra o que chamam de “ataque generalizado aos direitos territoriais dessas populações que parte do governo, da bancada ruralista no Congresso e do lobby de grandes empresas de mineração e energia” e em defesa da Constituição. O artigo em questão é o 231, que assegura o direito “imprescritível” dos povos indígenas sobre suas terras.
“Os direitos constitucionais dos povos indígenas, dos quilombolas e de outras populações tradicionais, assim como os seus territórios, encontram-se sob forte ataque por parte de interesses econômicos poderosos, que defendem o seu direito à propriedade mas não respeitam os nossos direitos coletivos à nossa terra sagrada, e ainda querem tomar para si as terras públicas e os seus recursos naturais”, diz a Carta de Mobilização da articulação.
A Apib é composta pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), Conselho dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul e Grande Assembleia do Povo Guarani (Aty Guasu). Essas organizações, por sua vez, reúnem centenas associações e comunidades indígenas.
Na Carta de Mobilização, a Apib denuncia uma “ofensiva legislativa sendo promovida pela bancada ruralista”, que “afronta, inclusive, acordos internacionais assinados pelo Brasil, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas”. Os indígenas citam, como exemplos dessa ofensiva, as PECs 215/00, 237/13 e 038/99, o PL 1610/96, e o PLP 227/12.
Segundo eles, no entanto, “o próprio governo federal tem mantido uma conduta omissa, em relação aos direitos dos povos, e conivente com os interesses dos ruralistas e do latifúndio, nossos inimigos históricos, que durante o ano passado aprovaram um novo Código Florestal adequado aos próprios interesses e este ano pretendem aniquilar direitos indígenas ao território”. Tal postura se materializaria em medidas como a Portaria Interministerial 419/2011, a Portaria 303/2012 da Advocacia-Geral da União, e o Decreto 7957/2013.
Exploração por terceiros
De maneira geral, avaliam os indígenas e seus apoiadores, a maioria dessas propostas e medidas busca evitar o processo de reconhecimento e demarcação de terras de povos originários ou abri-las para a exploração por terceiros. “Os povos indígenas sofrem o maior ataque desde a promulgação da Constituição, há 25 anos. A bancada ruralista quer de todas as formas limar os direitos garantidos, visando explorar os territórios indígenas e atender o interesse do agronegócio, atender mesmo o capitalismo. Tudo isso, claro, é o Congresso alinhado ao Poder Executivo. O Executivo está comungando com isso”, alerta Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib.
Para Cleber Buzatto, secretário executivo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), “esse ataque violento aos dispositivos que sustentam os direitos indígenas mostra a existência de uma configuração de forças políticas e interesses econômicos extremamente articulados, que fazem uso de um número amplo de instrumentos para atingir seu objetivo”.
De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O parágrafo segundo desse artigo garante que aos índios lhes cabe “o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Já o parágrafo sexto diz: “As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
Não é esse, no entanto, o entendimento de grandes empresas do agronegócio, de mineração e energia, parlamentares ligados a esses setores e governo federal. “No Brasil, pretende-se quintuplicar a produção mineral e expandir o agronegócio. 98% das terras indígenas estão na Amazônia, onde se concentram os minérios e as terras ainda não ocupadas pela agropecuária”, lembra a deputada federal Janete Capiberibe (PSB/AP), integrante da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas. Segundo ela, dada a grande quantidade de ruralistas no Congresso Nacional, “se numericamente não houver uma pressão muito grande dos povos indígenas, esse trator vai passar por cima de seus direitos”.
PEC 215
De autoria do deputado federal Almir Sá (PPB/RR), a Proposta de Emenda à Constituição 215, do ano 2000, propõe transferir do Executivo para o Congresso Nacional a prerrogativa exclusiva de aprovar demarcações de terras indígenas e ratificar as demarcações já homologadas. Lideranças indígenas e apoiadores denunciam que, numa instância dominada por ruralistas, essa seria uma estratégia para travar de vez as demarcações. “O Poder Legislativo sofre forte influência do agronegócio, então, há outros interesses influenciando na tramitação dessa PEC. Se for aprovada, o processo de demarcação vai ficar nas mãos do agronegócio. Os ruralistas querem assegurar direitos dos grandes detentores de propriedade, em detrimento dos direitos da população indígena”, afirma a senadora Ana Rita (PT/ES), que na última terça-feira (1) organizou, por meio da Comissão de Direitos Humanos do Senado, a qual preside, um debate a respeito da Constituição e direitos indígenas.
Em 16 de abril deste ano, centenas de indígenas ocuparam o plenário da Câmara dos Deputados para impedir que os partidos indicassem nomes à comissão especial que analisaria a proposta. Diante da pressão, o presidente da casa, o deputado Henrique Alves (PMDB/RN), convenceu os líderes partidários a suspenderem as indicações temporariamente. No entanto, em 18 de setembro estava prevista a instalação dessa comissão, que dos 21 titulares já tinha 16 indicados – 14 destes integrantes da bancada ruralista. No mesmo dia, porém, Henrique Alves suspendeu a reunião que a trataria – a pedido dos parlamentares do PT, que queriam mais tempo para discutir a PEC. O PT é contrário à proposta e, por isso, ainda não indicou seus três nomes a que tem direito na comissão especial.
Os opositores da PEC 215 argumentam que ela é inconstitucional, em primeiro lugar, por pretender transferir ao Legislativo uma prerrogativa do Executivo, o que violaria o princípio da separação de poderes. “Não cabe ao Legislativo o papel de executor, e sim o de criar legislações e fiscalizar se estas se cumprem. O papel de demarcar terras é do Executivo, em particular da Funai [Fundação Nacional do Índio], que foi criada para isso”, diz a senadora Ana Rita. Já a deputada Janete Capiberibe, citando o jurista Dalmo Dallari, que participou de uma das reuniões do grupo de trabalho sobre demarcações criado após a ocupação da Câmara em abril, destaca que a proposta violaria também o artigo 231 da Constituição.
No começo de agosto deste ano, integrantes da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas protocolaram no Supremo Tribunal Federam um mandado de segurança para que o órgão impedisse a criação da comissão especial que analisaria a PEC 215 e sua posterior tramitação, discussão e votação. Em setembro, o ministro Luís Roberto Barroso rejeitou a solicitação por considerar que o debate sobre o assunto não seria suspenso, embora tenha afirmado em sua decisão que a proposta poderia de fato fragilizar a proteção constitucional aos direitos indígenas. “Uma vez finalizada a tramitação, entraremos de novo com o pedido de impugnação da matéria já votada e aprovada na Câmara e no Senado, para que o STF nos conceda liminar suspendendo os efeitos da lei. Porque é inconstitucional”, revela a deputada do Amapá.
PLP 227
Outro motivo de preocupação dos indígenas é o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, de autoria do deputado Homero Pereira (PSD/MT), que, de acordo com seus críticos, permite atividades de terceiros em terras indígenas. A proposta pretende regulamentar o parágrafo sexto do artigo 231 da Constituição, que veta o uso desses territórios por não índios “ressalvado relevante interesse público da União”. O problema, no entanto, é que o PLP, em seu artigo primeiro, expande esse conceito: “São considerados bens de relevante interesse público da União (…) as terras de fronteira, as vias federais de comunicação, as áreas antropizadas produtivas que atendam a função social da terra (…)”. Por “áreas antropizadas produtivas” entende-se atividades realizadas por não índios.
“Em termos de conteúdo, o PLP 227 se equipara ou é pior que a PEC 215. Porque o 227 acaba abrindo as terras indígenas a todos os setores que têm interesse nelas, como o agronegócio, a mineração e as empreiteiras. Esses setores tentam emplacar uma versão de que aquilo que é interesse deles seja considerado pelo Estado como relevante interesse público da União”, argumenta Cleber Buzatto, do Cimi. Um PLP semelhante, ainda sem número, foi apresentado recentemente pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR) à Comissão Mista de Consolidação da Legislação Federal e Regulamentação da Constituição Federal.
Executivo
De parte do Poder Executivo, as ameaças vêm, segundo as lideranças indígenas, da Portaria Interministerial 419/2011 – que agiliza os procedimentos administrativos para a construção de empreendimentos que afetam terras indígenas, como hidrelétricas –, da Portaria 303/2012 da Advocacia-Geral da União – que permitiria, por exemplo, intervenções militares e empreendimentos hidrelétricos, minerais e viários em terras indígenas sem consulta prévia aos povos, além da revisão dos territórios já demarcados e homologados – e do Decreto 7957/2013 – braço das Forças Armadas criado, segundo os críticos, para a repressão de manifestações de populações contrárias aos grandes empreendimentos.
“O governo federal busca, de todas as formas, medidas para regulamentar a exploração dos recursos naturais dentro das terras indígenas. O plano de governo é baseado na agenda desenvolvimentista sem considerar a questão social. Tudo está valendo para que se possa executar empreendimentos que façam o Brasil se tornar uma potência econômica mundial”, critica Sônia Guajajara, da Apib. “A gente não é contra que o Brasil cresça, mas desde que não afete os direitos das minorias.”
O deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS), presidente em exercício da Frente Parlamentar da Agropecuária – a bancada ruralista –, e o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, não responderam às solicitações de entrevista até a publicação desta matéria.
O que diz o artigo 231 da Constituição Federal
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º – Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.”
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Índios protestam contra maior ofensiva em 25 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU