Por: André | 27 Setembro 2013
A proscrição da Irmandade Muçulmana, nesta segunda-feira, e a prisão de milhares de seus dirigentes não resolverão os problemas de fundo do Egito. O governo islamita de Muhammed Mursi, derrocado pelo militares em 03 de julho, tinha uma coisa em comum com a ditadura de Hosni Mubarak que, em 2011, perdeu o poder em consequência de um levante popular: os dois governos aderiram ao credo neoliberal.
O atual governo de fato obteve uma ajuda dos países árabes de 12 bilhões de dólares e conseguiu evitar o abraço do Fundo Monetário Internacional (FMI), mas no momento não há nenhuma indicação de que vá buscar uma alternativa. Página/12 conversou com o economista egípcio da Universidade de Denison, dos Estados Unidos, Fadhel Kaboub, sobre o transfundo econômico da crise política do país.
A entrevista é de Marcelo Justo e publicada no jornal argentino Página/12, 26-09-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Há algum sinal de mudança da política econômica neoliberal que esteve por trás da queda de Mubarak e de Mursi?
Não. Com o governo de Mursi já tínhamos uma agenda neoliberal até a morte, tanto de livre mercado como de livre-comércio. Seu programa baseava-se na promoção do turismo, na empresa privada, no investimento estrangeiro e na abertura comercial. Assim como Mubarak, o acento estava em sair da crise pela via da exportação e para isso necessitava-se de investimentos estrangeiros para atrair, por exemplo, companhias têxteis com a armadilha de uma mão de obra baratíssima. O atual governo não é tão explícito porque não se sabe como o povo pode reagir. Foram mais cautelosos e receberam muita ajuda do Kuwait, Arábia Saudita e dos Estados Unidos, o que lhes permite evitar o FMI. Sem eles, o banco central egípcio estaria quebrado.
Muitos países buscam sair da crise pela via da exportação. Por que este modelo é tão prejudicial para o Egito?
O problema para países em desenvolvimento, que não podem competir com os países desenvolvidos, é que quanto mais abrem a economia e buscam acelerar as exportações, mais acabam acelerando as importações. É o que acontece no Egito com o seu déficit comercial, que disparou desde que começou a abertura com Mubarak. De maneira que para fazer um encaixe, necessitamos importar uma enorme quantidade de matéria-prima, tecnologia e outros bens. No Egito, tudo isto é mais grave porque tem, além disso, dois grandes déficits: o déficit energético e de alimentos. O Egito é o maior importador de trigo e está entre os cinco maiores de milho. Necessitamos de dinheiro para comprá-los no mercado internacional. Com os altos preços a que são vendidos nos mercados, acabamos importando inflação. Esta inflação dos preços dos alimentos foi uma das fontes destes protestos.
Mas o modelo anterior também não conseguiu resolver os problemas do Egito.
Com o sistema estatista anterior havia uma espécie de acordo tácito entre o ditador e a população. Segundo este acordo, o governo provia uma relativa prosperidade e uma razoável segurança social em troca de que a população não protestasse pela falta de liberdade. Agora temos uma política neoliberal que está atacando a classe média baixa e os mais pobres e aprofundando a desigualdade. Mas, além disso, não temos nem democracia nem liberdade. O acordo foi quebrado. Isso acelerou a crise política.
Em seu trabalho, você fala de um problema estrutural de balança comercial deficitária. O Egito exporta menos do que importa e até agora se endividou ou dependeu de ajuda para resolver este déficit. Que outra saída há além de pedir emprestado, seja aos países árabes ou ao FMI?
O problema não vai se resolver pedindo dinheiro. A única maneira de eliminar o déficit de alimentos é aumentar a produção doméstica. Está é a estratégia a longo prazo porque implica uma mudança cultural na qual se pode substituir os produtos que importamos por grãos produzidos no país. Necessitamos de uma política integral em matéria alimentar, agrícola, ambiental e de habitação. Sequer se está pensando em tudo isto. Podemos sair de um gargalo este ano, mas a deficiência estrutural de alimentos vai acontecer no ano que vem de novo, não importa quanto dinheiro obtivermos este ano dos países árabes ou do FMI.
Mas esse é o problema. O Egito precisa de dinheiro agora para resolver seu déficit alimentar, não pode esperar que estas políticas de longo prazo deem resultados. Por isso pede emprestado.
É verdade, mas a política de longo prazo sequer está colocada. Quando negociamos estes empréstimos com a Arábia Saudita, Estados Unidos e Kuwait, precisamos fazê-lo pensando nas soluções de longo prazo, como os investimentos em energia ou em produtos agrícolas egípcios. Os empréstimos têm que estar também vinculados a este plano. Por isso falo de soberania financeira. Temos que recuperar a capacidade de imprimir dinheiro e controlar a nossa dívida e nossos investimentos, algo que a política neoliberal não permite.
Uma parte do problema das contas do Egito é a dívida externa que você diz que deveria ser declarada “odiosa”. Isto seguiria o modelo do Equador?
Exatamente. A ideia da dívida odiosa tem mais de 100 anos e se baseia em que se uma dívida foi contraída sem que o povo a tenha respaldado, é uma dívida ilegítima se o dinheiro emprestado não beneficiou o povo, mas a elite governante e se quem emprestou sabia de que maneira o dinheiro seria usado. A questão é que na prática necessita-se de um apoio internacional muito forte para poder avançar no tema ou uma forte posição ideológico-política. Se os Estados Unidos apoiarem, não há problema. Foi o que aconteceu com a dívida do Iraque depois da queda de Saddam Hussein, quando os Estados Unidos pressionaram os países do Oriente Médio para que aceitassem o cancelamento da dívida iraquiana.
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Egito. “A agenda já era neoliberal”. Entrevista com Fadhel Kaboub - Instituto Humanitas Unisinos - IHU