Por: André | 23 Setembro 2013
“A tarefa dos cientistas é tentar destrinchar os fenômenos naturais e encontrar as leis que regem o cosmos. Portanto, estamos continuamente nos deparando com as limitações da razão para completar o quebra-cabeça da realidade, isto é, a transcendência. Nestas linhas esboço a minha visão particular sobre como os cientistas se situam diante da realidade e de que maneira a nossa relação com a criação, se existe um diálogo saudável e atualizado entre razão e fé, nos abre as portas para Deus”, escreve Miguel García Echevarría, em testemunho publicado na revista espanhola Razón y Fe, n. 1379, setembro de 2013. A tradução é de André Langer.
Miguel García Echevarría é doutorando em física teórica pela Universidade Complutense, de Madri, Espanha.
Eis o artigo.
A tarefa dos cientistas é tentar destrinchar os fenômenos naturais e encontrar as leis que regem o cosmos. Portanto, estamos continuamente nos deparando com as limitações da razão para completar o quebra-cabeça da realidade, isto é, a transcendência. Nestas linhas esboço a minha visão particular sobre como os cientistas se situam diante da realidade e de que maneira a nossa relação com a criação, se existe um diálogo saudável e atualizado entre razão e fé, nos abre as portas para Deus.
A beleza de uma flor (o cientista diante da realidade)
Richard P. Feynman, Prêmio Nobel de Física de 1965 e personagem singular e polifacético que popularizou a física com seu caráter extrovertido, contava que um amigo artista, pegando uma flor, dizia-lhe que reduzia sua beleza ao analisá-la do ponto de vista científico. Mas Feynman rebateu dizendo-lhe que, embora não tivesse um sentido estético tão refinado como ele, era capaz, sim, de contemplar sua beleza. E, ao mesmo tempo, podia maravilhar-se também com a beleza da sua estrutura interna, dos processos subatômicos, da origem microscópica da cor, ou do fato de que as abelhas pudessem percebê-la... Em suma, não apenas era capaz de apreciar sua beleza estética, como podia ter acesso à beleza a partir de outros ângulos. As equações que os cientistas manejam são belas e estão envoltas em uma grande harmonia e simetria; e a nossa aproximação à realidade está cheia de emoções.
E por que começo com esta história? Porque queria dar, primeiro, algumas pinceladas sobre como os cientistas se situam diante da realidade e que parâmetros utilizam, antes de me ocupar de como Deus irrompe nela (para os crentes, claro) e que papel ela exerce na nossa relação com a criação e a sociedade.
Toda disciplina tem sua própria linguagem, seus matizes, e acaba moldando de uma ou de outra forma as pessoas que nela trabalham. As lentes com que um médico, um pianista, um juiz ou um filósofo olham a realidade não são as mesmas; os detalhes que ganham importância e os que passam despercebidos dependem muito dos óculos. E os cientistas também têm uma maneira muito particular de se aproximar da realidade. As ciências procuram entender por que e como ocorrem os acontecimentos, construir modelos e ser capaz de predizer com exatidão o que vai acontecer nestas ou naquelas condições. Assim, a busca de padrões, o descarte dos detalhes para ficar com a raiz das questões, a conexão da ideias em diferentes planos e a linguagem quadriculada (“matematizada”), são algumas das características que configuram a nossa relação com o entorno. E, por sua vez, dentro das ciências, podemos encontrar ainda mais diferenças segundo o âmbito da realidade que é o objeto de seu estudo, que, no meu caso, é a física. Portanto, tudo o que vou contar daqui em diante será sob a ótica de um físico.
A física é, talvez, a disciplina que está mais em contato com a fronteira entre o material e o transcendente, com esses dois lados da mesma realidade, seja no mundo quântico das partículas elementares e suas propriedades esotéricas, como no do inabarcável cosmos e seus objetos de ficção científica. Submergir nos mistérios mais profundos da criação é uma experiência estarrecedora. Saber que o Sol acabará engolindo a Terra, que as galáxias se separam umas das outras inexoravelmente e que o universo está condenado ao eterno esfriamento, é de arrepiar. Matutar sobre a origem do cosmos, da matéria, desenterrar a ideia de tempo e espaço absolutos, saber que o acaso é uma propriedade quântica inerente à realidade e que exerceu um papel preponderante no surgimento da espécie humana, é um tremendo exercício de humildade. Ser consciente de que o livre arbítrio é simplesmente uma propriedade emergente de um sistema caótico como é o cérebro e que, provavelmente, a espécie humana não é o estado superior da evolução, e que, além disso, podem existir em outras galáxias, ou inclusive em outros universos, formas inteligentes, dá muita perspectiva. E quando digo saber, refiro-me a conhecer as equações e dados empíricos que estão por trás destas questões, com o que esgotamos – até o limite do conhecimento atual, que evidentemente é limitado – a aproximação com a realidade pelo lado material. De fato, esse é o nosso objetivo, aproximar-nos, a partir da ciência e o máximo possível, da fronteira com o transcendente, um lugar muito pouco confortável e, ao mesmo tempo, apaixonante.
Princípio e Fundamento (o cientista diante de Deus)
Desde pequeno, sente-se verdadeiro fascínio pela ordem natural e pelo fato de que se possa encerrar dentro de equações um pedacinho da realidade. É uma profunda experiência a de adentrar-se nos segredos da natureza e começar a desvelá-los. Mas chega um momento em que a gente se confronta com a pura realidade, porque há alguns de seus aspectos que fogem completamente à razão. E é então, situado às portas dessa fronteira, que se abre um caminho para Deus que só alguns, os crentes, percorrem. Caminho que me recorda muito o Princípio e Fundamento dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio: “O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor [...]” (EE.EE. 23). Estas palavras representam o núcleo da experiência mística de um cientista, como sua relação com a criação o leva a Deus e Este o devolve a ela.
Como dizia no começo, se está tremendamente consciente da insignificância da espécie humana no vasto cosmos. Mas esta assustadora experiência, quando se toca fundo, dá um giro radical e se transforma em louvor, e se sente então que ao aproximar-se dos mistérios da natureza se está pisando terra sagrada. Já não há temor, já não há limitação; abre-se um horizonte novo que dá sentido a tudo. Deus está por trás de cada átomo e cada átomo fala de Deus. Seu amor agora inunda toda a criação, e o outro lado da moeda que antes estava bloqueado aparece, completando a realidade. Louvor e reverência andam de mãos dadas, uma mistura de admiração e humildade que fazem a gente se prostrar diante da criação em seu conjunto e dar graças a Deus, que nos devolve a bola já no espaço e tempo concretos aos quais pertencemos. É aqui e agora onde nos cabe dar resposta, onde louvor e reverência se convertem em ação e serviço.
Diálogo entre razão e fé e a nova evangelização
Estar aberto à transcendência não é algo exclusivo dos cientistas, mas de toda pessoa humana. Mas, talvez, é verdade que no âmbito da ciência esta questão é de alguma forma transversal e torna-se mais explícita, porque o nosso trabalho nos faz estar continuamente expostos àquilo que vai além do que podemos explicar, àquilo que nunca poderemos modelar nem reduzir a equações. É por isto que, em geral, e segundo a minha experiência pessoal, no mundo da ciência há um grande respeito entre crentes e não crentes. É verdade que há posturas intransigentes e muito polarizadas, mas o comum é tolerar amigavelmente as crenças do outro, pois todos nos sentimos próximos dessa fronteira com o transcendente.
Mas para que essa experiência de nos depararmos com a transcendência dê um passo a mais e nos fale do Deus de Jesus, e para que os cientistas crentes possam comunicar o Evangelho em nosso entorno, é fundamental que haja um rico diálogo entre razão e fé, “[...] com a convicção de que a fé tem recursos suficientes para acolher os frutos de uma sã razão aberta à transcendência e tem, ao mesmo tempo, a força de sanar os limites e as contradições nas quais a razão pode cair” (XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 7-28 de outubro de 2012. Mensagem ao Povo de Deus). É importante poder incorporar as novas teorias e as descobertas científicas à teologia moderna e à linguagem que os cristãos utilizam para transmitir o Evangelho. Necessitamos de uma fé reflexiva e de uma ciência aberta à transcendência. É evidente que as mudanças de paradigma que ocorreram, por exemplo, ao se passar da concepção geocêntrica (Ptolomeu) à heliocêntrica (Copérnico, Galileu), ou do tempo absoluto (Newton) ao relativo (Einstein), afetaram de maneira profunda o nosso enfoque filosófico e teológico da própria realidade. Portanto, ambas as disciplinas, que a partir de ângulos diferentes se aproximam da mesma realidade, necessitam andar de mãos dadas, interpelar-se e alimentar-se mutuamente. Não é possível que um avanço científico em nossa compreensão do cosmos não tenha nenhum reflexo sobre a teologia, não é possível que nossas tentativas de articular e nos aproximarmos da transcendência sejam alheios ao contínuo avanço do conhecimento científico. Se há avanços em uma disciplina, é vital incorporá-los à outra e progredir assim equilibradamente com as duas para uma melhor compreensão da criação. Atualmente, poder comunicar a experiência do amor de Deus no mundo da ciência, e inclusive na sociedade em geral, passa inevitavelmente por ser capaz de conciliar razão e fé.
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A nova evangelização no mundo da ciência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU