24 Agosto 2013
"É contra essa irreflexão, de atender sem atender-se, essa "descapacidade" de agir sem pensar, que Hannah Arendt se insurge e denuncia como a causa profunda das bestialidades e da banalização do mal. Não por acaso, pagou muito caro por recusar-se a depositar a oferta de seu pensamento sofisticado e generoso no mercado das demandas alheias, sempre ávidas por inquirir, condenar e matar a tudo o que possa rotular de heresia.", escreve Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 23-08-2013.
Eis o artigo.
Aconcheguei-me aos meus filhos e chamei os amigos Jane, Treici, Marcelo e Natalia para ver outra vez o filme em que a atriz Barbara Sukowa vive um dos períodos mais significativos na vida da filósofa Hannah Arendt. Numa pequena pausa da agenda intensa, alimento para a mente e o coração.
Para mim, o filme de Margarethe von Trotta é "de ação". Não pelo frenesi típico desse gênero, mas pelo que tem de instigante, pelo alvoroço do pensar que interrompe o automatismo a que somos empurrados cotidianamente. A repetição apenas atende ao querer alheio de si mesmo, do que dizer, fazer e ouvir. É impotente para criar, infalível para estagnar.
O filme impressiona pela fidelidade ao pensamento em ação de Hannah Arendt, que, ao relatar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, recusa a comodidade da condenação fácil e escolhe a imprevisível singularidade de um mergulho mais profundo. Denuncia, assim, que a banalização do mal pode esconder-se por trás do que poderíamos chamar de banalização do bem: a repetição sem reflexão do que um sistema autoritário consagra como normal, desejável e bom.
Nas escolhas de Hannah afirmam-se a autenticidade e o irredutível desejo de autoria com os quais uma pessoa consegue situar-se no mundo por sua singularidade, sem limitar-se a atender o que dela se espera em previsíveis demandas.
Ao contrário do individualismo, que atomiza a força integradora das relações, essas pessoas se dispõem à troca na diferença. Não fazem o que querem nem o que os outros querem, mas o que devem fazer. Conhecem o direito, mas conhecem mais ainda o irrenunciável dever contido no direito: de ser o que é, de afirmar o que sua singularidade lhes possibilita que sejam, como o psicanalista francês Alain Didier poeticamente insiste em caracterizar o dever-ser.
É contra essa irreflexão, de atender sem atender-se, essa "descapacidade" de agir sem pensar, que Hannah Arendt se insurge e denuncia como a causa profunda das bestialidades e da banalização do mal. Não por acaso, pagou muito caro por recusar-se a depositar a oferta de seu pensamento sofisticado e generoso no mercado das demandas alheias, sempre ávidas por inquirir, condenar e matar a tudo o que possa rotular de heresia. Tornou-se o que deveria ter sido. Foi capaz de dizer, em seu tempo, o que os ouvidos e mentes deste outro tempo, longínquo futuro, não poderiam ser privados de ouvir.
Hannah nos sussurra a coragem de seguir a nossa consciência sem nos deixar ensurdecer pelos que profetizam a ausência de futuro e nos querem fazer acreditar que a história termina neles. Em "A Condição Humana", expressa sua esperança, nosso legado: "Os homens, ainda que devam morrer, não nasceram para morrer, mas para recomeçar."
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Dever ser. "Hannah Arendt". Comentário sobre um filme - Instituto Humanitas Unisinos - IHU