Por: Jonas | 09 Julho 2013
O teólogo José Ignacio González Faus faz uma breve e inicial análise da Carta Encíclica Lumen Fidei. Entre os muitos elementos que enfatiza, está a constatação de que “nestes meses de pontificado, Francisco (na foto, à direita de Joseph Ratzinger) teve uma série de gestos positivos, muito carregados, aliás, por simbologias e significados. Na encíclica, não consegui notar um só parágrafo que pudesse ser visto como fundamento teológico de todos esses gestos”. O artigo é publicado em seu blog Miradas Cristianas, 07-07-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Fonte: http://goo.gl/12wXq |
O que segue são brevíssimas observações, fruto de uma rápida primeira leitura da encíclica. Que isto fique muito claro, inicialmente, pois aparecem coisas que numa leitura mais lenta podem ser ponderadas. O mundo dos meios de comunicação possui grandes vantagens, mas, às vezes, é preciso pagar esse preço de uma ditadura do imediato. Apesar das “quatro mãos”, referidas humoristicamente pelo irmão Francisco, a encíclica me pareceu muito mais um texto quase na íntegra de Ratzinger, que Francisco teve a delicadeza de tornar seu e apenas lhe acrescentou alguma nota, no início e no final.
Onde mais se percebe isto é no seguinte detalhe: nestes meses de pontificado, Francisco teve uma série de gestos positivos, muito carregados, aliás, por simbologias e significados. Na encíclica, não consegui notar um só parágrafo que pudesse ser visto como fundamento teológico de todos esses gestos. Do texto atual, não brotará um grande desejo de “uma Igreja pobre e para os pobres”, a não ser, no máximo, uma Igreja que pode se gloriar por ter uma Madre Teresa. Sem perceber (pois, a falta de conhecimento de nosso mundo me parece outro traço da encíclica) até que ponto Madre Teresa, por mais exemplar e admirável que fosse sua caridade, converteu no ópio das classes altas.
É muito surpreendente que na breve história da fé traçada pelo texto, começando em Abraão, apresente o chamado feito a Moisés como se Deus tivesse quisesse apenas ter um povo que o cultuasse, e não porque “ouviu o clamor de seu povo”. Uma afirmação assim nasce de uma opção prévia (consciente ou inconsciente), mas não do texto bíblico. Parece-me que é típica do medo de Ratzinger às consequências políticas da fé e da teologia.
Outros três traços muito ratzingerianos parece que banham o texto pontifício. O primeiro é a obsessão pela síntese greco-judaica como harmonia definitiva entre a razão e a fé. Ratzinger polemiza contra os muitos que, hoje, afirmam que a relação com o Deus bíblico se orienta pela linha da escuta (o Deus que chama), ao passo que na Grécia segue pela linha de visão que é mais possessiva. A encíclica demonstra que não existe tal diferença; e embora seja verdade que a luz bíblica se orienta na linha do amor (como a encíclica afirma muito bem), o amor é sempre um chamado.
Pessoalmente, também acredito que a Grécia é desfigurada quando é reduzida ao “logos”, esquecendo-se que tão gregos como Platão ou Aristóteles, são todos os mitos (Prometeu, Ariadne, Sísifo, Orfeu...), cuja riqueza Nietzsche havia captado muito bem (a quem mencionarei depois). De qualquer modo, eu diria que a síntese Atenas-Jerusalém não é uma síntese universal e definitiva historicamente; e que aqueles que hoje propugnam uma deselenização do cristianismo mereceriam um pouco mais de atenção.
Outro traço muito ratzingeriano é a proposta contra a ditadura do relativismo. A encíclica repete tons já muito conhecidos nos escritos de Ratzinger, sem ter chegado a perceber, em minha modesta opinião, nem as razões dessa ditadura (entre as quais estaria uma inegável absolutização sufocante de muitas coisas relativas, por parte da Igreja), nem o que essa ditadura pode ter de válida, como o chamado à humildade e desinstalação do seguidor que não tem onde reclinar a cabeça, assim como não percebe como essa ditadura acaba contradizendo a si mesma, porque a absolutização de Mamon [dinheiro] cabe perfeitamente nesse relativismo ocidental.
Nesta linha, outro traço ratzingeriano é a defesa diante da acusação feita ao monoteísmo, como intrinsecamente intolerante. Eu também não compartilho dessa acusação, mas acredito que nós, os crentes, mais do que refutá-la, somos chamados a compreender e a combater as inclinações indubitáveis que no monoteísmo podem levar a essa intolerância absolutista, justamente para nos proteger contra elas e para colocar em relevo o Deus a que se faz referência quando falamos de monoteísmo. Entretanto, agora, não é o momento de entrar nestes assuntos, mas de destacá-los como conteúdos totalmente ratzingerianos do texto de Francisco.
Finalmente, há um último detalhe que gostaria de poder elucidar, que é o seguinte: a encíclica começa com texto muito sério de Nietzsche, numa carta para sua irmã, que diz: se o que você quer é a paz cômoda e fácil, mantenha a fé, se o que quer é a aventura da vida, deixe sua fé. Inicialmente, pensei que o introdutor desta citação era Ratzinger e que isto é um ato inegável de coragem. Agora, duvido que seja assim (e preferiria que não fosse) porque, na realidade, tenho a sensação de que a encíclica não consegue responder este desafio. Em um primeiro momento, parece que sim, porque aponta o amor como fundamento da fé, e a tudo o que o amor e a confiança no amor possuem de aventura vital.
No entanto, pouco a pouco, parece que o texto vai sendo reconduzido, outra vez, para paragens ratzingerianos: a verdade cristã é o amor (expressão muito bíblica e literal da Carta aos Efésios), mas, em seguida, acrescenta-se que o amor cristão também inclui a verdade (caritas in veritate acima de veritas in caritate), estabelecendo um equilíbrio paritário entre ambos que, em minha opinião, o autor da primeira Carta de São João não aceitaria. Por fim, com isto, o que parece ser solicitado ao crente é apenas uma adesão à Igreja, aos sacramentos e ao Magistério.
Aventuras “liberacionistas” ou que “conhecer a Javé é praticar a justiça” (Jr 22,16) ou que ainda temos que “aprender o que significa quero misericórdia e não culto”, ficam fora da ótica deste texto. Assim, acaba sendo uma encíclica para dar boa consciência ilustrada aos setores mais conservadores, sem exigir-lhes nenhuma mudança de rumo como a de Zaqueu. Boníssima consciência, pois o texto é intelectualmente muito rico, claro e erudito (até com algumas discussões semânticas, que parecem mais próprias de um livro do que de uma carta-encíclica).
E, sem sair da citação dessa carta de Nietzsche, tenho a impressão de que se esta imbuísse o autor da encíclica, não deveria ser respondida por uma exposição teórica da fé, mas por uma análise mais existencial das duas aventuras: a do crente e a do que se atreveu a “passar uma esponja para apagar o céu”, como o louco de gaia ciência.
Há anos, li em Eusebi Colomer (e sinto não tê-lo agora em mãos) um texto de Nietzsche que não posso garantir agora, e que pareceu significativo: era uma carta à mulher de Wagner (pela qual o filósofo andou discreta e secretamente apaixonado), que dizia: “nunca deixe a Deus, porque eu o deixei e agora ando perdido”. Não se trata então (entre fé e ateísmo) da opção entre a serenidade burguesa (de um platonismo para o povo) e a aventura do recriador de todos os valores. Trata-se de uma dupla arriscada aventura, sendo que não é a mesma coisa escalar a montanha Pedraforca (ou Everest) em momentos em que você se sente exausto e perdido, mas sabendo que segue pelo bom caminho, e em momentos em que você precisa confessar que, na realidade, não sabe para onde vai. Algo disto deveria estar presente no texto, caso a primeira citação obedecesse a seu autor e não fosse um acréscimo posterior...
Devo concluir que tudo isto não são mais do que as rápidas primeiras impressões. Tomara que sejam completadas por outros, e corrigidas se precisar. De qualquer modo, fico com o melhor significado da encíclica: um gesto delicado de Francisco para com seu predecessor, que assume como própria dele [a encíclica] para que não fique como um trabalho perdido. Isto sim significa “a verdade na caridade”.
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Primeiríssimas impressões sobre a Lumen Fidei. Artigo de González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU