25 Mai 2013
"Precisamos de uma orientação ética que nos ajude alinhar nossas práticas para a superação da crise atual. Nesse quadro dramático, como fundar um discurso ético minimamente consistente que valha para todos?", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Segundo ele, "esta nova ética de cunho universal e salvador é o cuidado essencial para com tudo o que existe e vive que está atualmente ameaçado pela voracidade ilimitada humana".
Eis o artigo.
Em alguns lugares da Terra se rompeu, há dias, a barreira dos 400 ppm de CO2, o que pode acarretar desastres sócio-ambientais de grande magnitude. Se nada de consistente e coletivamente fizermos, podemos conhecer dias tenebrosos. Não é que não podemos fazer mais nada. Se não podemos frear a roda, podemos no entanto diminuir-lhe a velocidade. Podemos e devemos nos adaptar às mudanças e nos organizar para minorar os efeitos prejudiciais. Agora se trata de viver radicalmente os quatro erres: reduzir, reutilizar, reciclar e rearborizar.
Precisamos de uma orientação ética que nos ajude alinhar nossas práticas para a superação da crise atual. Nesse quadro dramático, como fundar um discurso ético minimamente consistente que valha para todos?
Até agora as éticas e as morais se baseavam nas culturas regionais. Hoje na fase planetária da espécie humana precisamos refundar a ética a partir de algo que seja comum a todos e que todos a possam entender e realizar.É o que propunha Paulo Freire com sua Etica Universal do Ser humano que nós acrescentaríamos do ser humano e da Mãe Terra.
Olhando para trás, identificamos duas fontes que orientaram e ainda orientam ética e moralmente as sociedades até os dias de hoje: as religiões e a razão.
As religiões continuam sendo os nichos de valor privilegiados para a maioria da humanidade. Elas nascem de um encontro com o Supremo Valor, com a Última Realidade. Desta experiência nascem os valores de veneração, respeito, amor, solidariedade, compaixão e perdão, fundamentais para a preservação da vida. Muitos pensadores reconhecem que a religião mais que a economia e a política é a força central que mobiliza as pessoas e as leva até a entregar a própria vida (Huntington).
Outros chegam até a propor as religiões como a base mais realista e eficaz para se construir “uma ética global para a política e a economia mundias”(Küng). Para isso as religiões devem dialogar entre si. No diálogo acentuar mais os pontos em comum do que os pontos de diferenciação. Com isso pode se inaugurar a paz entre as religiões. Esta paz não se basta a si mesma mas deve animar a paz entre todos os povos e a paz com a natueza e uma paz perene com a Mãe Terra.
A razão crítica, desde que irrompeu, quase simultaneamente em todas as culturas mundiais, no século 6ª a. C. no assim chamado tempo do eixo (Jaspers), tentou estatuir códigos éticos universalmente válidos, baseados fundamentalmente nas virtudes, cuja centralidade ocupava a justiça. Mas afirma também a liberdade, a verdade, o amor e o respeito ao outro.
A fundamentação racional da ética e da moral – ética autônoma – representou um esforço admirável do pensamento humano, desde os mestres gregos Sócrates, Platão, Aristóteles, passando por Immanuel Kant até os modernos Jürgen Habermas, Enrique Dussel e entre nós Henrique de Lima Vaz e Manfredo Oliveira entre outros de nossa cultura.
Entretanto o nível de convencimento desta ética racional foi parco e restrito aos ambientes ilustrados. Por isso com limitada incidência no cotidiano das populações. Mesmo assim está se impondo a justiça ecológica: tratar de forma adequada os processos naturais para que possam ser sustentáveis, vale dizer, se manter, se reproduzir e melhorar.
Esses dois paradigmas não ficam invalidados pela crise atual, mas precisam ser enriquecidos se quisermos estar à altura das desafios que nos vêm da realidade hoje profundamente modificada.
Faça-se urgente uma ética do cuidado e da responsabilidade solidária. Para instaurar este tipo de ética precisamos descer descer àquela instância na qual se formam continuamente os valores, conteúdo principal da ética. A ética, para ganhar um mínimo de consenso, deve brotar da base comum e última da existência humana. Esta base não reside na razão, como sempre pretendeu o Ocidente.
A razão – e isso é reconhecido pela própria filosofia – não é nem primeiro nem o último momento da existência. Por isso não explica tudo nem abarca tudo. Ela se abre para baixo de onde emerge, de algo mais elementar e ancestral: a afetividade e o sentimento profundo. Irrompe para cima, para o espírito, que é o momento em que a consciência se sente parte de um todo e que culmina na contemplação e na espiritualidade. Portanto, a experiência de base não é “penso, logo existo”, mas “sinto, logo existo”. Na raiz de tudo não está a razão (“logos”), mas a paixão (“pathos”) que se expressa pela sensibilidade e pelo afeto.
Daí o esforço atual de resgatar a razão sensível e cordial (Maffesoli, Cortina, Duarte, Muniz Sodré). Por este tipo de razão captamos o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos de serem apetecíveis. É a partir do coração e não tanto da cabeça que vivenciamos os valores. E é por valores que nos movemos e somos. Em último termo, está o amor que é a força maior do universo e o nome próprio de Deus. Essa ética nos pode engajar em práticas para enfrentar o aquecimento global. O cuidado é uma expressão do amor, amor que protege, confere descanso, cura feridas passadas e evita futuras.
Mas temos que ser realistas: a paixão é habitada por um “demônio” que pode ser destruidor. É um caudal fantástico de energia que, como águas de um rio, precisa de margens, de limites e da justa medida. Caso contrário irrompe avassaladora. É aqui que entra a função insubstituível da razão. É próprio da razão ver claro e ordenar, disciplinar e definir a direção da paixão.
Eis que surge uma dialética dramática entre paixão e razão. Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez e a tirania da ordem. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões do puro defrute das coisas. Mas, se vigorar a justa medida e a paixão se servir da razão para um auto-desenvolvimento regrado, então pode surgir uma consciência ética que nos torna responsáveis face ao caos ecológico e ao aquecimento global.
Por ai há caminho a ser percorrido. Para um novo tempo, uma nova ética. E esta nova ética de cunho universal e salvador é o cuidado essencial para com tudo o que existe e vive que está atualmente ameaçado pela voracidade ilimitada humana. Como o cuidado é da essência humana e por isso se encontra em cada pessoa e em todo o ser vivo, ele pode ser acordado e ser transformado num atitude consciente e permanente. Desta forma nos fará ativos face ao aquecimento global, impedindo que ameace nossa existência nesta planeta, tão pequeno, tão belo e tão radiate de vida em todas as suas formas.
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Ética a partir do aquecimento global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU