Por: André | 04 Mai 2013
“O cristianismo confessa a doação máxima de Deus na liberdade responsável de filhos e na igualdade solidária de irmãos. Confessa-o a partir do significado de alguns fatos ocorridos há 20 séculos e que foram se preparando obscuramente na história concreta de um pequeno povo. Mas o confessa também a partir de profundas experiências interiores que confirmavam o significado desses fatos. Esta confissão se apoia, finalmente, em uma Promessa – selada na Ressurreição de Jesus – de que, isso que aqui parece ser uma tarefa ou um caminho quase impossível, se realizará em plenitude quando, ressuscitado fora do tempo e do espaço, Deus seja ‘tudo em todos’ (1 Cor 15, 28). E ainda com outras palavras: ‘Deus mesmo entrou em nossa história dolorosa para semear nela seu amor redentor’ e revelador.”
A reflexão é do teólogo espanhol e jesuíta José Ignacio González Faus, em artigo publicado no sítio Religión Digital, 02-05-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
É hora de terminar. Este livro [Heresias do catolicismo atual, Trotta] não quis ser uma acusação, mas uma confissão. Algumas vezes alguns amigos me haviam pedido que escrevesse uma autobiografia. Não penso em fazê-lo porque tenho horror a esse gênero, apesar de conhecer aquele prazer dos velhos que é “recordar”, como cantava a música.
Mas posso dizer que este livro tem muito de autobiográfico. É, de certo modo, uma história da minha fé: das deformações que fui descobrindo ao longo dos dias na minha carne crente e que tentei corrigir. Por minha profissão, tive a imensa sorte de manter um contato constante e continuado com a tradição cristã e suas fontes, e creio que isso me permitiu recobrar o autêntico sentido de muitas verdades da minha fé. É esse privilégio que este livro quer comunicar aos irmãos na fé, porque a teologia é sempre uma tarefa eclesial. E porque penso que pode ser útil na atual conjuntura que, na minha opinião, oscila entre um cristianismo “apergaminhado” e um cristianismo “líquido”.
Assim resultou quase uma espécie de “pequeno catecismo”, caso me permitirem plagiar o título de Lutero: um livro sobre a identidade do Deus revelado em Jesus Cristo, sobre a identidade do seguimento de Jesus e sobre a identidade para a qual a Igreja é chamada. Uma reflexão sobre a identidade cristã, mais que uma lista de denúncias.
Com efeito, o leitor poderá perceber com facilidade como o livro está demarcado pela cristologia e pela pneumatologia (capítulos 1 e 10): a Palavra e o Espírito, as “duas mãos de Deus” (como dizia Santo Irineu) ou os dois dons de Deus que nos permitiram conhecê-lo. Estas duas mãos abraçam os capítulos restantes: a revelação trinitária de Deus faz fluir uma corrente incessante de igualdade entre todos os homens, filhos do mesmo Pai e irmãos do Senhor Jesus Cristo; uma igualdade que afeta tanto o mundo como a Igreja (capítulos 2 e 9). A partir daí, a centralidade que ocupam na Cristologia tanto a Cruz como a Eucaristia (capítulos 3 e 4), reclamam sua correspondência com uma Igreja kenótica e eucarística: nazarena e samaritana, caso quisermos dizê-lo com as palavras de Víctor Codina (capítulos 7 e 8). E, voltando outra vez da Igreja à vida, tudo isso convoca o cristianismo para uma tarefa de transformação do gênero humano para a igualdade dos filhos de Deus (capítulos 5 e 6).
Deixando agora essa sistematização dos nossos 10 capítulos, podemos parafrasear o parágrafo anterior da seguinte maneira: o cristianismo confessa a doação máxima de Deus na liberdade responsável de filhos e na igualdade solidária de irmãos. Confessa-o a partir do significado de alguns fatos ocorridos há 20 séculos e que foram se preparando obscuramente na história concreta de um pequeno povo. Mas o confessa também a partir de profundas experiências interiores que confirmavam o significado desses fatos. Esta confissão se apoia, finalmente, em uma Promessa – selada na Ressurreição de Jesus – de que, isso que aqui parece ser uma tarefa ou um caminho quase impossível, se realizará em plenitude quando, ressuscitado fora do tempo e do espaço, Deus seja “tudo em todos” (1 Cor 15, 28). E ainda com outras palavras: “Deus mesmo entrou em nossa história dolorosa para semear nela seu amor redentor” e revelador.
Tudo isto, ao mesmo tempo parece impossível pelo difícil que é, pode parecer irreal pelo bonito que é. Mas as fontes cristãs dão provas de um realismo muito lúcido quando afirmam que o resultado da mensagem anterior é a seguinte: “o mundo não o conheceu (e os seus não o receberam)”; mas que, não obstante, “tanto amou Deus o mundo que lhe entregou o Seu Próprio Filho, não para condenar o mundo, mas para salvá-lo”; que apesar de tudo isso “o mundo os odiará” e, apesar desse ódio, o Mestre não pede para os seus “que os tire do mundo, mas que os livre do mal”; enquanto a eles lhes somente diz: “tenham confiança: eu venci o mundo”; e “esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé”.
Por tudo isso, creio poder acrescentar que este livrinho, embora alguns o neguem por se sentirem incomodados, é intrinsecamente eclesial ou, ao menos, creio que assim seja a minha fé, tal como aqui a exponho. Conheço de sobra o que alguns chamaram de “história criminosa do cristianismo”. Recordo como a cúria romana ficou incomodada quando, naquele livro de J. M. Díez-Alegría (Eu creio na esperança), que causou tão grande alvoroço há cerca de 50 anos, reconhecia o autor que a história do nosso catolicismo é, às vezes, “muito pouco cristã”. Mas sei também que a tradição cristã está repleta de maravilhas hoje desconhecidas: porque aqueles que deveriam conhecê-las não a estudam e aqueles que a estudam o fazem apenas para atacá-la. Sei que na atual profunda crise da minha Igreja (efeito, na minha opinião, de um rechaço covarde do Vaticano II), há muitos sapateiros católicos que se empenham em negar a crise ou, no máximo, falam de “uma pequena desaceleração”; e temo que, como aconteceu com o presidente do governo anterior, essa reação de avestruz não faça mais que engordar e aprofundar a crise.
Mas, precisamente por isso, este livro pretende também alertar contra a frequente reação atual de muitos desenganados que optaram, quando não pela ruptura oficial, por “buscar a vida” e trilhar um caminho sozinho ou em círculos minúsculos e cômodos, com o enorme perigo de cair ou no que hoje se chama de “religião à la carte”, ou no que Hegel criticou outrora como a solidão estéril do romântico. Quando tantos me acusaram e denunciaram de não amar a Igreja porque a critico muito, permito-me inverter a frase e dizer: critico a Igreja porque a amo muito. Porque apesar de tudo, é por ela e através de suas rugas e suas manchas que chegou a nós a manifestação de Deus em Jesus. Se, às vezes, a deformou, temos o depósito das outras Igrejas e comunidades eclesiais perdido, às vezes, por nós: a acefalia das Igrejas unidas em comunhão mais que por imposição, e o papel justificador de Deus que nos liberta da meritocracia cristã. E, ao mesmo tempo, nós temos algo a contribuir na linha do que foi dito nestas páginas.
Parece-me também que o exposto até aqui não é uma mera doutrina teórica, mas um programa de vida. E que todas estas não são verdades meramente informativas ou curiosas, mas performativas e salvadoras: marcam um caminho e uma direção irrenunciáveis embora não exijam estar na meta. Porque esse é o caminho da verdade, da radicalidade e da qualidade cristã.
Ao mesmo tempo, creio que esse caminho é importante não apenas para nós cristãos, mas para todo o gênero humano: a vida ensina que o homem é capaz do pior e do melhor, e que vivemos em uma sociedade estruturada para tirar dele o pior: a sociedade do deus Dinheiro e do capitalismo avarento, que irá devorando sistematicamente todas as conquistas anteriores da humanidade, que tanto esforço custaram. Devorará as conquistas caso não cuidarmos antes do planeta Terra cada vez mais doente (e este seria para mim o prognóstico mais provável).
Lamento que, neste contexto, a Igreja não seja capaz de tirar o melhor do ser humano; porque estou convencido de que o cristianismo é o mais capaz para isso. Muitas vezes comentei como as duas palavras mais ditas a propósito de Jesus nos Evangelhos são estas: as entranhas comovidas e a liberdade – este programa tão simples e tão enormemente rico e profundo é acessível como apelo para todos os homens, sejam crentes ou não. Para isso é preciso que o cristianismo volte a ser visto como a incrível boa notícia que é, e que a Igreja seja sinal eficaz dessa boa notícia, em seus aspectos não só comunitários, mas também institucionais. E, para isso, que seja deveras Igreja dos pobres e que a autoridade volte a ser, nela, serviço e não carreira.
Creio, pois, que esta obra só pode ser concluída com a oração daquele bom homem do Evangelho: Creio, Senhor, mas aumentai a minha fé.
E uma vez concluída assim, talvez valha a pena envolvê-la com esse papel de presentes, de um verde esperança inquebrantável, como aquele que se reflete nestes versos do amigo Casaldáliga:
E chegarei de noite
com o gozoso espanto
de ver,
por fim,
que andei,
dia a dia,
sobre a própria palma da Tua mão.
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“Critico a Igreja porque a amo muito”. Artigo de José Ignacio González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU