Por: Jonas | 12 Março 2013
“Dizer a verdade embora doa, por exemplo, ou respeitar a Constituição quando não me convém. Não para retroceder, nem para entregar o país, nem para baixar as bandeiras, mas para estar melhor”. Essa é a opinião de Santiago O’Donnell a respeito dos desdobramentos dados em torno da doença e morte de Hugo Chávez. O artigo é publicado no jornal Página/12, 10-03-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A morte de Chávez não está certa. Não digo a morte em si, todos nós vamos morrer, mas a maneira como a partir do poder ela foi dirigida, ocultando-se a verdade das pessoas que se preocupavam com ele, que saíram às ruas para chorar quando, finalmente, disseram que Chávez estava morto. Essas pessoas, esse povo, mereciam a verdade.
Eu entendo que na política não convém mostrar fragilidade. Entendo que a construção do mito serve para afiançar os herdeiros políticos do comandante. Entendo que o desejo é o de preservar tudo o que Chávez fez pela inclusão social na Venezuela e pela unidade latino-americana. No entanto, o que fizeram continua me parecendo uma falta de respeito.
Não sou especialista, mas me parece que uma pessoa que é operada de câncer ao menos quatro vezes, em menos de um ano e meio, tem um câncer severo e não está em condições de governar. Já na campanha para as eleições de novembro Chávez já foi visto todo inchado de cortisona e ele próprio reconheceu que precisava tomar fortes calmantes para controlar a dor.
Em seguida, ficou três meses em Cuba, praticamente sem dar sinais de vida, fechado num hospital de um país que depende economicamente do que o enfermo ou seu eventual sucessor possa decidir. Isto sem que os presidentes estrangeiros, que viajaram para visitá-lo, pudessem vê-lo, como também ninguém que não pertencesse ao círculo íntimo de Chávez.
Os cubanos conduziram a comunicação, a partir da ilha, como fazem desde que a revolução triunfou há muitas décadas: seguindo o rigor do modelo totalitário propagandístico das ditaduras chinesa e soviética. Exceto na Coreia do Norte, Irã, Cuba e países do estilo, quando alguém importante fica doente, ainda mais um presidente, é costume que o médico que o esteja tratando ou o chefe da equipe médica informe periodicamente sobre o estado de saúde do paciente. Alguém responsável do ponto de vista médico, que fale a respeito da enfermidade do paciente, em que consistem as operações que são realizadas, que órgãos foram atingidos e qual é o tratamento feito. Informação básica. Não é preciso entrar em detalhes, nem fazer um reality, como também não se pode negar o evidente.
No caso de Chávez, ainda não sabemos que tipo de câncer sofreu, nem o que removeram dele com as intervenções cirúrgicas, nem de onde removeram. Nunca se soube se utilizaram respiração artificial, apesar de ter sido dito pelo governo, muitas vezes, que Chávez padecia de uma infecção pulmonar. Não se sabe se estava sob o efeito de morfina e nem sequer se em algum momento esteve inconsciente durante os três meses que esteve em Cuba, segundo os chavistas, governando a Venezuela.
Então, parece-me lógico que muita gente comece a colocar em dúvida a informação fragmentada e incompleta dada por Maduro e por vários ministros, convertidos em porta-vozes de médicos que nem sequer se sabe quem são. Não é necessário odiar a Chávez, nem ter amigos no exílio de Miami, nem ser golpista, para desconfiar.
Antes, um médico havia me dito que preparar um corpo para ser exibido durante dez dias, sem se decompor, leva dias, não horas. Todavia, Chávez começou a ser mostrado poucas horas depois do anúncio de sua morte e, segundo testemunhas, estava com um ótimo aspecto. As fotos com as filhas e com a capa do jornal “Granma” desse dia, ao melhor estilo Fidel; o tweet anunciando que estava feliz por retornar à Venezuela; a nítida e vigorosa assinatura estampada no único decreto que supostamente assinou, durante sua última melhora em Cuba; a ausência de familiares e funcionários no Hospital Militar, depois de sua volta, enquanto supostamente estava se curando, após aterrissar sem que ninguém o visse; a supostas discussões de gabinete e as enérgicas ordens que dava a seus ministros, sendo que depois não podia falar, pois havia feito uma traqueotomia... enfim, um monte de coisas que podem ser verdade.
Contudo, quando um governo oculta informação básica, se somos honestos, acredito, vamos suspeitar. E o que importa se houve ocultamentos e ainda mentiras se tudo foi feito em função de um bem comum, o de preservar as grandes conquistas da Revolução Bolivariana? Ah, está bem. Ignoremos isso e também o fracasso econômico, o mercado negro do dólar, a inflação recorde, a criminalidade recorde, a corrupção, as maletas, as patotas armadas que agem como milícias chavistas, a Corte Suprema de maioria automática, o ódio aos Estados Unidos, sendo que todo o seu petróleo é vendido ao mesmo, o enfrentamento das organizações nacionais e internacionais de direitos humanos. Ignoremos que não houve ditador no mundo que Chávez não abraçasse. Façamos de conta que há golpes de Estados que são bons, como o que foi dado por Chávez, e golpes de Estado que são maus, como o que fizeram contra Chávez. Ignoremos estes detalhes e vamos ao dia em que anunciaram sua morte.
Parece-me que para anunciar um complô internacional, sobretudo num dia de tanta sensibilidade para os venezuelanos, é preciso ser um pouquinho mais sério, talvez até pudesse ser mencionada alguma prova. E dizer que o inocularam o câncer, justo nesse momento, não é jogar com os sentimentos das pessoas?
Assim chegamos à Constituição. E, sim, vou dizer o mesmo que disse Capriles, esse rival tão odiado pelo chavismo. Não digo isto porque foi Capriles que disse, mas porque li a Constituição. Minha impressão é que ela não está sendo cumprida. Ou melhor, que o governo venezuelano está manipulando a Carta Magna chavista para garantir a liderança de Maduro em defesa do modelo carismático cesarista plebiscitário que o comandante modelou.
A Constituição venezuelana diz que se a ausência do presidente ocorrer antes do juramento, o presidente da Assembleia deve assumir, não sendo Maduro, mas Diosdado Cabello. Diz isto muito claro. Também diz que o presidente tem que assumir no dia 10 de janeiro e não quando possa, em outra data. Também diz que nem o vice-presidente, nem os membros do gabinete podem ser candidatos, numa eleição, para substituir ao presidente. Também diz que o vice-presidente deve ser nomeado por decreto presidencial, já que não é um cargo eletivo. Contudo, para a sorte dos chavistas, com sucessivas ampliações, Chávez assegurou uma maioria automática no Tribunal Superior de Justiça (TSJ), órgão de 32 membros, que substituiu a velha Corte Suprema de sete juízes, a partir da Constituição de 1999.
Nas sucessivas sentenças dadas sob medida para Maduro, o TSJ decidiu que ele poderia ser o “vice-presidente executivo”, embora Chávez não tivesse assinado nenhum papel nomeando Maduro vice-presidente, pelo fato de que Maduro tinha sido vice-presidente no período anterior. Em seguida, sentenciou que Chávez poderia fazer o juramento quando e onde quisesse, sem que com isso pusesse em dúvida que estava no mando e controle do país, quando estava evidente que não tinha condições de assumir, apenas para sustentar Maduro. Depois, habilitou a candidatura de Maduro para as próximas eleições ao inventar o cargo de “presidente encarregado”. Ou seja, para que se entenda, a Constituição proíbe o vice e os ministros de serem candidatos, mas não ao “presidente encarregado”. Como esse cargo não existe, não aparece na Constituição. Melhor dito, não existia. A manobra se consumou na sexta-feira, num juramento que, longe dos trinta e poucos mandatários que assistiram o funeral de Chávez, contou apenas com as presenças de Correa, dos presidentes destituídos de Honduras e Paraguai e de uma ex-senadora colombiana expulsa do Congresso de seu país, todas elas pessoas muito respeitáveis, mas com um peso simbólico relativo no quesito legitimação.
Esse é o problema que eu vejo nesta situação. Entendo que Lula, Dilma, Insulza e os estadunidenses estejam preocupados, pois a transição é um momento delicado num país tão polarizado como a Venezuela e ninguém quer ter problemas. Entendo que os Castro estejam preocupados pelo petróleo presenteado, pois meio século de experimento comunista não foi suficiente para que se dessem conta de que desta forma a economia não funciona.
Porém, toda esta manipulação que é feita para fortalecer a Maduro, em longo ou curto prazo, poderia fragilizá-lo. Porque podemos passar dias inteiros falando das falências e fragilidades das democracias formalistas e neoliberais que colapsaram na Venezuela e em outros países da região. De como essas democracias fracassadas foram interpeladas e substituídas pela camada de caudilhos personalistas que Chávez liderou. Porém, algumas formalidades parecem necessárias. Dizer a verdade embora doa, por exemplo, ou respeitar a Constituição quando não me convém. Não para retroceder, nem para entregar o país, nem para baixar as bandeiras, mas para estar melhor. Para progredir a partir do que já foi, para além do mal e do bem.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Questões intrigantes a respeito da morte de Chávez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU