Por: Jonas | 18 Fevereiro 2013
Vivemos numa ditadura ou numa democracia? A pergunta tem, para o ensaísta francês Hervé Kempf (foto), uma resposta sem concessões: as sociedades ocidentais caminham para a ditadura. Os modelos que regem atualmente as sociedades democráticas do Ocidente são de fachadas, que apenas obedecem a um amo: o sistema financeiro. Seu poder absoluto sobre todas as coisas não apenas cria desigualdades abismais, entre os indivíduos, com também, sobretudo, levou o planeta a uma crise ecológica que coloca em risco a continuação da espécie humana.
Essa é a tese central do último livro pelo qual Hervé Kempf encerra a trilogia iniciada com dois livros famosos: “Como os ricos destroem o planeta” e “Para salvar o planeta, livrem-se do capitalismo”. O livro que encerra esta série é, desde o título, uma declaração de guerra contra aqueles que usam a democracia para se enriquecer: “Basta da oligarquia, viva a democracia”. O cenário que Hervé Kempf descreve é uma exata radiografia do mundo contemporâneo: os grandes meios de comunicação são controlados pelo capital, os lobbies secretos decidem sobre o destino de milhões de pessoas, passando por cima da vontade popular expressa nas urnas, a cultura das finanças e sua impunidade radical ditam as políticas contra o bem comum.
Em resumo, uma casta de poderosos desfaz a democracia, ao mesmo tempo em que destrói o planeta. Kempf explica que, para viver em paz e assumir os desafios do século XXI, é preciso restaurar a democracia. Isso impõe uma necessidade: desmascarar a oligarquia para apresentá-la da forma como ela é, ou seja, um regime que aponta para a manutenção dos privilégios de uma casta em detrimento das urgências sociais e ecológicas. O livro de Hervé Kempf reatualiza uma ideia potente e inovadora, cujas primeiras formulações se remontam aos anos 1970: é impossível pensar a democracia e o futuro da humanidade, caso não se inclua a ecologia como fator de regulação da mesma democracia.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada no jornal Página/12, 18-02-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você demonstra, com inumeráveis exemplos, como o mundo vai escorregando para uma espécie de regime autoritário, cujo único propósito é manter os privilégios de uma casta, a oligarquia. Isso o leva a uma conclusão social e politicamente dramática: o possível fim da democracia.
A oligarquia é a definição de um regime político. A oligarquia é um conceito inventado pelos gregos nos séculos IV e V antes de Cristo. Os gregos definiram as formas segundo as quais as sociedades humanas podiam ser governadas: a ditadura, o despotismo, a monarquia, a tirania, a democracia, que é o poder do povo para o povo e pelo povo, e depois definiram outra forma de governo que é precisamente a oligarquia. A oligarquia é o poder nas mãos de poucos. Então, o que eu digo é que, ao menos na Europa, estamos escorregando para a oligarquia. O sistema político atual faz com que um grupo de poucos atribua seus critérios ao resto da sociedade.
Você sugere que estamos numa fase de pós-democracia em que, com o objetivo de se manter no poder, a oligarquia mantém a ficção democrática.
A oligarquia repete, sem descanso, que estamos na democracia e que tudo é perfeito. É uma ficção. Até os intelectuais se esqueceram do conceito de oligarquia e contribuem para alimentar a ficção. Todos os intelectuais em sintonia ideológica com o capitalismo mantiveram a ideia segundo a qual só existam duas alternativas: a democracia ou o totalitarismo. Isso podia ser aceito, inicialmente, em dois exemplos: nos anos 1930, com Hitler, ou nos anos 1950 ou 1960, com a União Soviética. Podia-se dizer que era preciso optar entre a democracia e essas duas ditaduras. Contudo, isto acabou. Desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o afundamento da União Soviética, passamos a outra ordem. Entretanto, os intelectuais que estão a serviço do capitalismo persistiram na ideia segundo a qual existem apenas dois caminhos: a ditadura ou a democracia. Por isso, é importante que o conceito de oligarquia esteja bastante presente para entender que, progressivamente, a democracia nos foi roubada.
Os países europeus, e muito mais os Estados Unidos, estão escorregando para um regime oligárquico, em que o povo já não tem mais poder. A democracia europeia está doente, fragilizou-se muito, e orienta-se cada vez mais para a oligarquia. Já os Estados Unidos deixaram de ser uma democracia. São uma oligarquia, pois é o dinheiro que determina as orientações nas decisões políticas. Na realidade, a oligarquia é uma democracia que funciona apenas para os oligarcas. Uma vez que estão acordados entre eles, impõem as decisões. Nossos sistemas não podem mais se chamar democracia, uma vez que a potência financeira detém um poder desmedido. A autoridade pública está nas mãos do sistema financeiro. Os poderes públicos nunca tomarão uma decisão que prejudique os interesses econômicos, os interesses da oligarquia financeira. Devemos aceitar a ideia de que aqueles que possuem as rédeas do poder político do Estado não tomam decisões em benefício do interesse geral. Suas decisões podem ir contra o interesse público.
Esta ponderação implica que a soberania popular desapareceu, como ideia e como prática.
Evidentemente. Já não existe mais soberania popular. Quando o povo chega a refletir, discutir e deliberar em conjunto, e toma uma decisão, a oligarquia contradiz a decisão popular. Em 2005, na Europa houve um grande debate acerca de um referendo que, ao final, foi organizado na França e, em seguida, na Irlanda e Holanda, sobre um projeto para um tratado de Constituição Europeia. Durante seis meses, a sociedade francesa discutiu sobre este tema, como não fazia há muitos anos. Os meios de comunicação, que expandem a filosofia capitalista, diziam “é preciso votar pelo sim, é necessário votar a favor do tratado”. Contudo, o povo francês votou “não”. E o que aconteceu depois? Dois anos mais tarde, os governos da Europa impuseram esse tratado com algumas leves modificações, com o nome de Tratado de Lisboa. Houve, então, uma extraordinária traição da vontade popular. Exemplo como este também se encontra em outros lugares. Sem ir muito longe, em 1991, na Argélia, os islamistas venceram as eleições legislativas, mas os militares interromperam o processo com um golpe de Estado que acarretou uma guerra civil espantosa. Outro exemplo: em 2005, os palestinos votaram para elegerem seus deputados. Venceu o Hamas. No entanto, todos os Estados, desde os Estados Unidos até a Europa, passando por Israel, optaram por marginalizar o Hamas, pois o consideram uma organização terrorista. Não se respeitou o voto do povo palestino. O povo é o coração da democracia, ou seja, o princípio a partir do qual todos nós compartilhamos algo. O povo não é você e nem eu, mas todos nós juntos. Compartilhamos algo e devemos tomar uma decisão conjunta. Formamos um corpo, por isso se diz: “o corpo eleitoral”. Porém, o que aconteceu na Europa, em 2005, marca uma ruptura profunda com o povo.
No entanto, entre a ideia de oligarquia que existia em inícios do século XX e agora, também houve um corte radical nesse grupo.
Sim. Houve uma evolução da oligarquia. Agora podemos falar dos desvios da oligarquia incentivada pela própria evolução do capitalismo. Nos últimos trinta anos, o capitalismo se transformou. Tudo começa em 1980, quando Ronald Reagan vence as eleições presidenciais nos Estados Unidos e Margaret Thatcher chega ao poder na Grã-Bretanha. A partir daí, não apenas se plasmou um capitalismo orientado para a especulação financeira, como também se produziu uma transformação cultural, antropológica. A filosofia capitalista se expandiu com esta mensagem: “A sociedade humana não existe”.
Para os capitalistas, a sociedade é uma coleção de indivíduos que estão numa bola e sua única missão consiste em tirar o máximo de proveito. Para os capitalistas, o indivíduo está separado dos outros, está em permanente concorrência com os demais. Nessa visão, o comum não é mais o povo, mas o mercado. Por esta razão é que as pessoas possuem tantas dificuldades para se sentirem cidadãos que participam de um processo comum a todos. O sistema tem ocultado um dado: o fenômeno fundamental que se produziu dentro do capitalismo, nos últimos trinta anos, foi o aumento das desigualdades, em todos os países, incluídos os países emergentes.
Estamos numa fase de cruzamento de crises. Já não há uma, mas múltiplas, e todas se concentram ao mesmo tempo. A resposta das oligarquias é proporcional à intensidade da crise: o autoritarismo e a repressão como resposta.
Estamos num momento muito delicado da humanidade. A crise ecológica se agrava cada vez mais e as crises sociais crescem: Europa, Estados Unidos, países árabes, China, Índia. E diante do aumento dos protestos populares, a oligarquia tende a ir para uma direção cada vez mais autoritária, repressiva, militar. Isto é assim na França, na Itália, na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá. Em cada um desses países vemos o desenvolvimento impressionante das tecnologias policiais (câmaras de vigilância, fichamentos, etc.). Enfrentamos um duplo perigo: não apenas que a democracia se dirija para a oligarquia, mas também que a oligarquia e o capitalismo entrem numa fase autoritária, insistindo em temas como a xenofobia, a insegurança ou a rivalidade entre as nações. A oligarquia não quer adotar medidas para mitigar a crise ecológica ou diminuir as desigualdades. Não. O que a oligarquia quer é conservar seus privilégios fundamentais. É uma oligarquia destruidora. Acredito que ela não entende a gravidade da situação. Ao invés de evoluir, a oligarquia é cada vez mais reacionária.
Hoje há um elemento novo, que será, sem dúvidas, determinante: a crise ecológica, a crise climática. No entanto, poucos são os que estão dispostos a assumir os desafios.
Por duas razões, estamos num momento essencial da história humana. Em primeiro lugar, atravessamos um momento de nossa história em que a humanidade chega ao limite da biosfera. A espécie humana se expandiu e se desenvolveu, através do planeta, apoiada numa natureza que nos parecia imensa e inesgotável. Contudo, agora, o conjunto da espécie humana descobre que o planeta tem limites e que é preciso encontrar um novo equilíbrio entre a atividade e a criatividade humanas e os recursos. Devemos mudar a cultura e ultrapassar da ideia segundo a qual a natureza é inesgotável à realidade de que estamos colocando em risco esses recursos. Resta-nos aprender a economizá-los e utilizá-los com sabedoria e prudência. Nisto está em jogo uma mudança de cultura.
O segundo ponto, em importância, está no fato de que vivemos um momento em que formamos uma sociedade humana. Antes éramos como estrangeiros uns com os outros. Agora não. Inclusive, mesmo que no Rio de Janeiro se viva de forma distinta do que em Paris, Londres ou Shanghai, há muitos elementos comuns que nos levam a tomar consciência de que pertencemos ao mesmo mundo. A globalização não diz respeito apenas à globalização da cultura ou da economia, não, também se refere à população humana. Descobrimos que temos interesses comuns. A problemática das oligarquias ou da democracia também está presente tanto na América Latina, como na Ásia e na Europa. Somos a mesma sociedade. Isso é um elemento novo na história da humanidade. Porém, essa nova sociedade deve reescrever, inventar uma nova forma de viver com a biosfera e os recursos naturais. Se não fizermos isto, essa sociedade humana irá para o caos, concorrência e violência. Não apenas trará desordem, mas também deterá a aventura humana.
Para você, não é possível haver uma renovação da democracia, caso não se leve em consideração a questão ecológica.
A ecologia e a democracia são inseparáveis. Se olharmos para os anos 1970, quando o movimento ecologista tomou seu impulso, fez isto com uma crítica à democracia. A democracia sempre esteve no coração da ecologia. Contudo, logo o capitalismo a arrastou para a oligarquia e não estamos mais numa situação democrática. O capitalismo e a oligarquia empurram sempre para o crescimento econômico. Porém, hoje sabemos que esse crescimento econômico acarreta danos importantes para o meio ambiente. Não sabemos ter crescimento econômico sem destruir o meio ambiente, sem emitir gases de efeito estufa, sem destruir as florestas, como na Amazônia, ou sem produzir enormes quantidades de soja, como na Argentina, para o qual se utilizam toneladas de pesticidas.
O crescimento permite que se esqueça da enorme desigualdade que existe. O crescimento permite acalmar as tensões sociais. O desenvolvimento da oligarquia, ou seja, o delírio de uma pequena quantidade de pessoas para se enriquecer de maneira colossal, empurra o crescimento e, ao mesmo tempo, a destruição da natureza. Por isso, a questão democrática é essencial. Temos que chegar a uma situação em que possamos discutir e conseguir diminuir a desigualdade e, assim, poder redefinir juntos uma economia justa, que não destrua o meio ambiente.
Em resumo, toda reformulação da ideia e do princípio de democracia passa pela ecologia.
Efetivamente, é impossível pensar o mundo se esquecemos da questão ecológica. Este tema não é exclusivo dos europeus ou dos ocidentais, não, é uma questão mundial. O tema da mudança climática, o tema do esgotamento da biodiversidade ou da contaminação são assuntos mundiais. É impossível pensar na emancipação humana, na dignidade humana, na justiça social, na evolução para uma humanidade realizada, em que cada pessoa possa expressar suas potencialidades em relação com os outros, no concreto, nada disto é possível pensar, caso se deixe de lado a natureza e a relação com a biosfera. A situação atual é grave em razão da crise ecológica, mas também cheia de esperanças. Temos dez ou vinte anos adiante para organizar a transição e permitir aos jovens do futuro que imaginem uma sociedade harmoniosa. Se daqui a dez anos não controlarmos a contaminação, se daqui a dez anos não conseguirmos impedir a evolução ditatorial do capitalismo, vamos enfrentar situações muito difíceis.
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“A autoridade pública está nas mãos do sistema financeiro”, afirma Hervé Kempf - Instituto Humanitas Unisinos - IHU