14 Fevereiro 2013
As consequências da secularização e laicização promovidas por Bento XVI em sua renúncia referem-se à distribuição dos poderes dentro da Igreja: paralelamente à diminuição do papel do papa, aumentará a dos concílios e dos sínodos, isto é, das assembleias dos bispos.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 12-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um ato revolucionário a renúncia do papa. E certamente o é. Isso nunca havia acontecido, salvo com Celestino V, que foi obrigado pelos franceses que depois continuaram exercendo o seu poder sobre Bonifácio VIII até o tapa de Anagni. E salvo um par de papas e de antipapas eleitos por concílios e conclaves medievais contrapostos.
O cânone prevê a renúncia, e até mesmo o Papa Ratzinger admitiu a sua possibilidade em um livro-entrevista seu de dois anos atrás; mas uma coisa é dizer, outra é fazer.
Portanto, um fato revolucionário. Mas qual é a natureza e quais serão as consequências dessa revolução? A natureza é evidente: a Igreja se laiciza. O papa até agora foi considerado dentro da Igreja e da comunidade dos fiéis como Vigário de Cristo na terra e, de fato, quando fala "ex cathedra" sobre questões de fé a sua palavra é infalível, como decretou o Concílio Vaticano I de 1870.
Esse ponto ainda é o obstáculo não superado que impediu a unificação entre católicos e anglicanos, e entre católicos e ortodoxos da Igreja Oriental. Os outros obstáculos estavam em grande parte superados, até os da supremacia do bispo de Roma sobre todos os outros: o primaz da Rússia estava pronto para reconhecer ao bispo de Roma a primazia de "primus inter pares", mas não a de Vigário da Divindade na terra.
A renúncia de Bento XVI anula esse obstáculo; o cânone, de fato, põe uma única condição: que o papa tome a sua decisão em plena liberdade, isto é, que não pese sobre ela alguma sombra de pressão e de chantagem. A vontade de Cristo não é nem citada, nem Ratzinger faz menção a ela nas breves palavras com as quais comunicou a sua decisão ao Consistório convocado na manhã dessa segunda-feira para se ocupar de objetos totalmente diferentes.
Portanto, diminui a relação direta entre o Chefe da Igreja e o Filho de Deus, e a autoridade do bispo de Roma sobre toda a cristandade não deriva de outra coisa que da eleição em conclave por parte dos cardeais, uma cerimônia totalmente laica, salvo o lugar em que ocorre (a Capela Sistina, que é uma igreja consagrada) e o perfume de incenso e o som dos sinos que acompanham o Veni Creator Spiritus.
As consequências dessa secularização e laicização referem-se à distribuição dos poderes dentro da Igreja: paralelamente à diminuição do papel do papa, aumentará a dos concílios e dos sínodos, isto é, das assembleias dos bispos.
Esse foi o pedido implícito mas evidente do Vaticano II, mas foi por mais de 30 anos a tese explicitamente defendida pelo cardeal Martini. A Igreja como instituição – disse e escreveu Martini em livros, pregações e diálogos – se fundamenta sobre duas autoridades, a do papa e a dos concílios e dos sínodos. O papa participa de uns e de outros com funções de coordenação e de direção, mas as decisões são tomadas pelos bispos, que são os depositários do legado dos Apóstolos de Jesus.
Não se trata de um fenômeno de pouco relevo. Basta considerar que os bispos estão muito mais interessados na pastoralidade do que no poder da hierarquia curial. A hierarquia curial deveria, em teoria, fornecer à pastoralidade os instrumentos e os meios materiais para evangelizar as almas e difundir o credo. A Igreja militante é confiada aos pastores de almas, bispos, párocos, sacerdotes, ordens religiosas. Mas essa é historicamente somente uma parte da realidade.
A Igreja-instituição deveria representar a custódia da Igreja militante e pastoral; ao invés, ocorreu o contrário. Por séculos e milênios, a instituição sufocou a pastoralidade e promoveu guerras, inquisições, corrupção, simonia. Não se tratou de episódios, mas sim de uma continuidade histórica, cujo pivô era o poder temporal. Lembram-se das Cruzadas? Lembram-se da Guerra das Investiduras que teve Canossa como etapa essencial? Lembram-se do exílio de Avignon? As alianças, o nepotismo, as dinastias fundadas pelos papas: os Colonna, os Orsini, os Caetani, os Farnese, os Piccolomini, os Borghese, os Della Rovere. E os Borgia?
A pastoralidade, no entanto, continuou e espalhou a sua semente larga e preciosamente, e isso foi um verdadeiro milagre. Mas o rosto abrangente da Igreja saiu em grande parte manchado. As suas capacidades de se confrontar com a modernidade foram fortemente reduzidas.
Essa situação poderia ter melhorado com o fim do poder temporal propriamente dito, mas não foi assim. A Igreja-instituição manteve a supremacia sobre a Igreja militante e pastoral, recuperando aquele poder através da política e do fascínio do espetáculo.
O pontificado do Papa Pacelli foi o cume da temporalidade política, não por acaso precedido pela concordata Pio XI-Mussolini; o espetáculo, ao invés, teve a sua estrela mais brilhante na figura do Papa Wojtyla, enfrentando sofrimentos terríveis, até mesmo a sua agonia e a sua morte .
Mas esses milagres (porque foram milagres de inteligência e também de fé e de dor) não resolveram os problemas da Igreja. Evadiram-nos e os deixaram aos sucessores.
Esses problemas, com o passar do tempo, se agravaram. Referem-se à recuperação do Sagrado, à dedicação dos fiéis à caridade, à Igreja pobre, à Igreja missionária, à fé na vida, ao contraste entre a liberdade dos modernos e a dogmática dos tradicionalistas. E as centenas de milhares de problemas postos pela bioética, pela psicologia do profundo, pelas desigualdades do mundo. As diferenças não curadas e talvez incuráveis entre a Igreja de Paulo, a de Agostinho, a de Bento, a de Francisco.
A nós, não crentes, agradaria muito que o futuro papa e bispo de Roma, em meio a tantas proclamações de santos que não fazem mais milagres (admitindo-se que os do passado os fizeram), propusesse a de Pascal. Seria o verdadeiro sinal de que algo está mudando nos palácios apostólicos. Se tivesse vivido por mais tempo, talvez o Papa João a teria feito.
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O pastor e o poder. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU