Por: Cesar Sanson | 15 Janeiro 2013
Em uma década o movimento indígena passou da expectativa por mudança à inviabilidade do diálogo.
A reportagem é de Cristiano Navarro e publicado pelo jornal Brasil de Fato, 14-01-2012.
A história brasileira se repetiu em sua então mais importante efeméride. Ao relembrar a data dos 500 anos da invasão portuguesa às terras onde mais tarde seriam reconhecidas como Brasil, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso mandou construir réplicas de Caravelas e organizou uma grande festa convidando políticos, religiosos, militares e puxa-sacos para comemorar a trágica colonização europeia. Em resposta, indígenas de todo Brasil, militantes sem-terra, quilombolas, estudantes, sindicalistas e parlamentares da oposição se dirigiram em marcha para participar do convescote mesmo sem convite. No caminho da marcha de Santa Cruz de Cabrália até Porto Seguro, onde se realizavam as comemorações, os “penetras” foram interceptados pela Polícia Militar da Bahia com bombas, helicópteros, gás lacrimogêneo, cachorros e balas de borracha.
As imagens da batalha que terminou com militantes feridos e presos evocavam a ideia de que dali em diante seriam outros 500, especialmente para o movimento indígena, que participou mais massivamente. Assim, a chegada de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da República fez crescer o sentimento de mudança. Mas não foi bem assim.
Apoiados em números que mostram a redução das demarcação de terras, o aumento dos casos de violência praticados pelo Estado contra as comunidades e a redução orçamentária para regularização fundiária dos territórios , o movimento indígena e seus apoiadores observam os dez anos de governo Lula e Dilma Rousseff como sendo de profundo retrocesso. “Retrocedemos muito neste período. Se antes lutávamos pelo cumprimento dos nossos direitos, hoje lutamos para não perder esses direitos reconhecidos na Constituição”, lamenta Sônia Guajajara, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Em média, os governos dos presidentes Lula e Dilma homologaram menos terras, em número e extensão, do que os antecessores José Sarney, Fernando Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (veja o quadro).
Na avaliação dos defensores dos direitos indígenas, a razão para este retrocesso está na opção de modelo desenvolvimentista para o campo e para as florestas adotado pelos governos nesta última década. “Pela origem do governo ligado aos movimentos sociais, o movimento indígena criou muita expectativa, mas ele fez uma aliança com os latifundiários e as mineradoras, deixando os nossos interesses de lado”, lembra Rildo Kaingang, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Mais grave do que o não reconhecimento dos territórios foi a utilização do decreto 1775/96 como instrumento redutor de terras indígenas. A partir de sua edição, várias terras sofreram redução durante o governo FHC. Embora durante a campanha o presidente Lula houvesse prometido a intenção de revogar o decreto, não apenas o manteve inalterado como também o utilizou para reduzir terras, a exemplo da exclusão de 230 mil hectares da terra indígena Baú, do povo Kayapó no estado do Pará, em 2004.
No congresso
O fortalecimento político e econômico dos setores ligados ao agronegócio e a exploração de energia e minérios, se traduziu em pressão não só sobre o poder executivo, mas também sobre o legislativo e o judiciário. Assim, não só as terras deixaram de ser reconhecidas pelo Estado como também as leis que asseguram este direito às populações indígenas passaram a ser ameaçadas. As Propostas de Emenda à Constituição (PEC) 38, de autoria do senador Mozarildo Cavalcanti do PTB de Roraima, e 215 sob responsabilidade do deputado Osmar Serraglio do PMDB do Paraná, colocam o Congresso como um dos responsáveis pelo reconhecimento das terras indígenas. No caso da PEC 38, além de submeter as demarcações de terras indígenas à aprovação do Senado, a proposta também estipula que as demarcações ou unidades de conservação ambiental não excedam 30% do território dos estados. Ou seja, alguns estados, especialmente os do Norte, teriam de rever as áreas já reconhecidas.
“O ataque direto aos povos indígenas se concretiza no avanço destas PEC´s. A bancada ruralista não se contenta com as pressões no Executivo e no Judiciário. Eles próprios querem decidir se uma terra é ou não indígena, se uma terra é ou não quilombola, ou se uma terra é ou não Reserva Ambiental”, avalia Buzatto. Em meio às pressões pelas mudanças na Constituição, a governabilidade se põe em favor dos ruralistas.“Hoje fica complicado contar com os deputados do PT que tradicionalmente defenderam os direitos indígenas”, crítica Rildo Kaingang.
Surdez
Uma das principais reclamações do movimento indígena durante este período é falta de ouvidos do Executivo. Após muita cobrança por mais diálogo, o governo criou em março de 2006 a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI). Composta por representantes do governo, representantes do movimento indígena e indigenista, a comissão foi pensada para acompanhar a tramitação de projetos de lei e propor diretrizes para a política indigenista do governo federal. Seis anos após sua criação, inúmeras são as críticas a este canal de interlocução.
Para Sônia Guajajara, a surdez do Palácio do Planalto impossibilita o entendimento entre as partes. “Com o tempo percebemos que estes espaços só serviam para legitimar as políticas do governo. Porque o governo pensava seus projetos em cima de nossos direitos e nossas terras e os tocava sem nos consultar. As coisas sempre vêm prontas do Executivo, como a Portaria 303 e a usina de Belo Monte. Este procedimento veio a interromper qualquer possibilidade de diálogo”, sintetiza.
A portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU) citada pela representante da Coiab é a grande dor de cabeça do movimento indígena. Entre outras determinações que ferem os direitos indígenas, a portaria afirma que as terras indígenas podem ser ocupadas por militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais, sem consulta aos povos; autoriza a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas; relativiza o direito dos povos indígenas sobre o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes em suas terras; e cria problemas para a revisão de limites de terras indígenas demarcadas.
“O governo não tem uma agenda de diálogo com o movimento indígena. As discussões que não interessaram ao governo são bloqueadas na CNPI atendendo sempre a interesses de mineradoras e do agronegócio”, ressalta Rildo Kaingang.
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Política indigenista: Era para ser outros 500 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU