04 Janeiro 2013
O atual contexto do trabalho exige um domínio cada vez maior de conhecimentos técnicos. A era moderna insuflou o domínio da técnica como garantia de poder. Essa expectativa, como ideologia, já inspirou e deu espírito à Revolução Industrial. Do ponto de vista humanístico, o sentido de individualidade tem aberto à sua frente uma dimensão completamente nova. Nessa amplidão, cada vez mais desértica, indivíduos “naturalmente” buscam seu espaço em termos de poder sobre a técnica. A luta pela sobrevivência na civilização hodierna ainda não abandonou o preceito antropológico de ser caracterizada como luta técnica: com ela e por ela. Talvez com a diferença de que hoje aquele antigo esforço de dominar a natureza se tornou algo refinado e intelectualizado.
O modelo econômico global, que organiza a vida humana, endossa esse panorama. Por detrás da concorrência entre humanos está, entre outras, a figura do especialista, detentor de determinado saber técnico, com o qual, muitas vezes, confunde sua própria identidade humana. O paradigma moral contemporâneo ainda não produziu nenhum constrangimento significativo para os limites de uso do saber como meio para a sobrevivência. O trabalho continua a potencializar a máxima baconiana, “saber é poder”, que originalmente fora pensada como poder humano sobre a natureza. Hoje tem se mostrado não apenas como poder do homem sobre a natureza, mas, sobretudo, como poder do homem sobre o homem, sobre a própria possibilidade de vida de outros seres humanos. E, numa visão sistêmica, representa ameaça constante sobre toda e qualquer manifestação da vida.
Associada à dimensão econômica – que, aliás, mobiliza o saber – trata-se de um modelo de poder que constrói frentes de exclusão. Quando se está fora, ou mesmo à margem, de processos de conhecimento técnico, automaticamente se está fora e à margem do poder. Basta lembrar que a própria educação tem sido pensada como subproduto da técnica. No contexto contemporâneo, operacionalizar o conhecimento se tornou a meta principal de algumas instituições sociais. Nesse caso, não é muito difícil encontrar a subjacente contradição com o espírito original de tais instituições.
Camadas inteiras da sociedade continuam necessitando de algum poder técnico para minimamente organizar suas vidas no sistema capitalista. Há um desafio ético de não se deixar degradar pelo modelo econômico, mas sem a ingenuidade de abandonar a importância da economia para uma vida digna. O mundo contemporâneo, por sorte, também apresenta formas legítimas de romper o pacto pretensamente neutro entre saber e poder. Assim, técnicas artesanais revigoram seu potencial econômico, contrariando a ideologia industrial. Cidadãos relegados a tarefas secundárias na divisão do trabalho reconquistam – em literal reciclagem de sua dignidade – a força que suas habilidades podem significar quando bem organizadas.
Nesse sentido, como publicado na 41ª edição dos Cadernos IHU intitulada “Olhares multidisciplinares sobre economia solidária”, o Programa Tecnologias Sociais para Empreendimentos Solidários - Tecnosociais, através de pesquisa e elaboração de indicadores sociais, compreende bem o primeiro passo a ser superado para uma transformação socioeconômica: a desorganização das vidas. É uma questão de justiça oferecer apoio para implementar a organização do cotidiano, cujo pano de fundo é o mesmo modelo econômico mundial que determina a sobrevivência de todos. A vida se concretiza nesse paradigma material, embora não deva ser reduzida a ele. Não há retórica suficientemente forte para suspender a necessidade de organizar a vida.
A partir da organização econômica da vida se abre a visão para outras relações antes pouco percebidas, ou mesmo tornadas invisíveis. Os sujeitos passam a internalizar a necessidade da articulação social. Cada um se compreende como parte da trama que compõe o todo que é o tecido social. A participação já não lhes representa uma ação social estranha. As experiências individuais ganham importância quando a sociedade se apresenta como uma malha cujo sentido é considerado vital, na medida em que necessita das ligações entre variadas experiências individuais. Não se trata de mero somatório, mas de complementação.
Eis que o acolhimento, que é um dos significados recalcados do ethos, se revigora, ressurge e floresce. Desde aí, dignidade e autoestima compõem o caráter cidadão desses articuladores, que, embora anônimos para os olhos embaçados do senso comum, são capazes de se reconhecer como protagonistas de suas próprias vidas e, acima disso, de respeitar a mutualidade implicada nesse reconhecimento. Seus cotidianos passam a ser reelaborados pela reflexão, que já não é mais resultado de ócio, mas reconhecida como força motriz capaz de impulsionar a continuidade de uma funcionalidade saudável do espírito comunitário.
Não se pode negar o elemento de resistência aí envolvido. É reconstruída também a possibilidade de autonomia de quem busca, como se diz coloquialmente, sustentar-se com as próprias pernas. Mas, para além disso, os braços no trabalho e a cabeça refletindo sobre o trabalho como manifestação tipicamente antropológica.
O comprometimento não é instrumental. E aqui se mostra a importância da reflexão sobre a disposição relacional e subjetiva dos comprometidos. O funcionamento organizado abandona aos poucos sua imagem caricata de automaticidade, mostrando-se vivo e orgânico.
Se o capitalismo inspira um aspecto devorador, na medida em que como grande sistema de organização das vidas humanas reproduz a obsessão pela produção subordinando a ela a própria existência humana e da natureza, por outro lado, a construção de laços legitimamente sociais tenta amenizar esse aspecto. O objetivo nessa outra lógica consiste em desconstruir a vulnerabilidade, pois esta torna os indivíduos reféns do aspecto sombrio e desumano do capitalismo, a saber, sua face competitiva, que corrói a possibilidade de uma realidade social solidária.
Está sendo pensada uma cooperação qualificada, que conta com a reciprocidade. O poder compartilhado no lugar do poder centralizado. Organização é também partilha de forças. Modelos que buscam organizar a vida econômica de modo solidário mostram sua ampla coerência com uma forma de organizar a sociedade como um todo.
Organizar todas as camadas da sociedade já é parte do caminho para torná-la mais justa e menos entulhada de hierarquias. Não é por coincidência que o termo grego economia guarde em sua origem esse sentido.
Os Cadernos IHU podem ser adquiridos na Livraria Cultural, no campus da Unisinos ou pelo endereço Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. Informações pelo fone 55 (51) 3590 4888.
A versão completa da edição no. 41 estará disponível neste sítio a partir de 21 de janeiro de 2013 para download em formato PDF.
O artigo é de Marcelo Leandro dos Santos, doutor em filosofia e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
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Uma economia que contribua para uma sociedade mais justa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU