Por: Cesar Sanson | 02 Janeiro 2013
Ex-coordenador da Funai (Fundação Nacional do Índio) na Amazônia, o indigenista José Porfírio Fontenele de Carvalho, 65, vai falar à Comissão da Verdade sobre as mortes de índios no período da ditadura militar. Ele foi testemunha do desaparecimento dos índios waimiri-atroari durante a construção da BR-174.
A reportagem é de Kátia Brasil e publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, 30-12-2012.
Eis seu testemunho.
Nasci em Granja, no Ceará. Aos 19 anos, durante a ditadura, fui para Brasília estudar contabilidade na UnB. Tive vários conflitos com os militares. Aquilo foi me chateando. Surgiu um concurso de auditor contábil no Serviço de Proteção do Índio, antes de a Funai ser fundada, em 1967. Fui o primeiro colocado.
Em Rondônia, conheci o sertanista Francisco Meirelles. Apareceu um índio nu, com arco e flecha na mão, foi a primeira vez que vi um índio na vida. De noite, pensei: esse povo precisa da minha ajuda. Larguei tudo para trabalhar com os índios. Me especializei nos bravos e valentes.
Quando cheguei a Manaus, encontrei o sertanista Gilberto Pinto Figueiredo Costa, ele tinha uns 30 anos. Éramos subordinados aos generais. Nosso contato com os índios waimiri-atroari era para montar postos de defesa. Eles não queriam fazer amizade. Começamos a fazer trocas de presentes: flecha por facão, panela de barro por alumínio.
Em outubro de 1968, os militares contrataram o padre italiano Giovanni Calleri com a missão de amansar os waimiri-atroari para abrir a picada da estrada BR-174. O padre chegou à aldeia atirando de fuzil. Eram 11 pessoas, dez morreram flechadas. Os militares diziam que boicotávamos a obra. Fiquei preso uma semana. Houve outro massacre em outubro de 1974, morreram mais seis pessoas da nossa equipe.
Fomos procurar o general Gentil Nogueira Paes, comandante do 2º Grupamento de Engenharia e Construção do Exército. Pedimos para parar a estrada. Ele disse: "Vou construir, mesmo que tenha que matar esses índios assassinos. Dei ordem para meter fogo". Saímos da reunião chorando, os índios não sabiam o que era estrada.
Em 21 de dezembro de 1974, o Gilberto recebeu aposentadoria à revelia. Fui transferido para Altamira [no Pará]. Naquele mês vim para Manaus me casar. O Gilberto era o padrinho. Após chamado dos índios, ele deixou o casamento e foi encontrá-los. No dia seguinte, estava morto. A versão dos militares é que encontraram o Gilberto morto. Não vimos o corpo porque o caixão foi lacrado. Não sabemos se ele morreu flechado ou a tiro.
Quero que a Comissão da Verdade investigue o que aconteceu com o Gilberto. Quando retornei a Manaus, em 1987, encontrei 375 índios na reserva [antes havia 1.500]. Eles disseram que houve ataques dos soldados. Prefiro que a Comissão apure, sem fazer alarde, e identifique como foram os métodos das mortes dos waimiri-atroari.
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Testemunha indígena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU