31 Outubro 2012
“La ley es como la serpiente; sólo pica a los descalzos” (camponês salvadorenho) é o subtítulo do texto "Crime e sociedade estamental no Brasil", de autoria do Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, do PPG em Direito – Unisinos, recentemente publicado pelos Cadernos IHU ideias, no. 178.
Publicamos a seguir a síntese da reflexão do jurista, feita por Afonso Chagas, mestrando no PPG em Direito da Unisinos.
Eis o texto.
Em tempos de debate sobre a reforma do Código penal, a leitura do texto torna-se fundamental, sobretudo pela análise do caráter estamental da organização social brasileira, sobretudo frente ao fenômeno da “criminalização da pobreza”.
O tema da “criminalização da pobreza” há muito tem sido um assunto enfrentado e por que não, evitado. Por vezes, diante de um “mundo perfeito” jurídico que não admite contestações, tanto a realidade histórica quanto o mundo dos fatos insistem em proclamar protestos e desmentir evidências.
Em sua análise, Lenio Streck parte da constatação de Raymundo Faoro de que o poder político no Brasil se articula a partir de um estado que é patrimonialista em seu conteúdo e estamental em sua forma. Esta organização, patrimonial pelo fato de se apoderar do aparelhamento do Estado (Donos do poder) e estamental pela forma como este poder patrimonialista é exercido (governo de interesses), tem, em terras brasileiras, demonstrado sua intenção e projeto através da “criminalização da pobreza”, como um meio eficaz de controle social. O primeiro Código Criminal brasileiro (1830) foi direcionado a uma clientela específica: (escravos e congêneres). Nesta mesma linha, neste Código havia uma espécie de seletividade penal, uma desproporção das penas entre os crimes “de senzala” e os da “casa grande”.
Em 1890, um ano depois da Proclamação da República, já possuíamos um novo Código criminal, agora voltado, sobretudo aos ex-escravos e congêneres. Instituiu-se os crimes contra a ordem pública, como a vadiagem, a embriaguez, a mendicância e a capoeira. No Código criminal de 1940 (atual código), a preocupação continuou sendo seletiva e portanto, apontando para o “andar de baixo”, com foco específico voltado para os crimes contra o Estado, o “livre” desenvolvimento do trabalho, a “proteção dos costumes”, porém sempre, com ênfase na proteção da propriedade privada.
Desta forma, historicamente, no Brasil, criminalizou-se a pobreza, mantendo-se sempre um direito penal de “classe”. Ao confrontar, no entanto, esta perspectiva do Direito penal com o advento da Constituição de 1988, era de se esperar que os “bons ventos” da constitucionalidade arejassem o Direito, sobretudo em função dos altos objetivos da República, como a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Novos bens jurídicos para além da defesa dos privilégios, do patrimônio e da segurança individual, deveriam preponderar. Contudo, não foi o que se efetivou. A “baixa constitucionalidade” tanto do Legislativo quanto dos operadores do direito não conseguiram articular a integridade desejada, ou seja, segue-se uma linha de defesa de direitos patrimoniais, mas não se atinge o patrimônio da coletividade, criminaliza-se a violação da honra, mas não se alcança condutas que agridam direitos da infância e da juventude, por exemplo. Tal incongruência, portanto, ainda reforça a ideia da criminalização da pobreza e desafia a necessidade de enfrentamento deste fenômeno e da necessidade de pensar e falar da “pobreza da criminalização” dos setores que, de fato, colocam em xeque os bens jurídicos mais relevantes.
Em tempos de debate e aprovação do novo Código Penal, as impressões até aqui, dão conta da permanência de um discurso conservador, o que se confirma inclusive pela seletividade das audiências públicas assim como do pouco debate e discussão nos centros de estudos específicos sobre a matéria, como as Universidades, por exemplo. Resta, portanto o desafio de insistir e imprimir o crivo da constitucionalidade no Direito penal inclusive combatendo os crimes que impedem a concretização dos direitos fundamentais em suas diversas dimensões.
Para que se possa superar, pois este estigma que aponta o direito penal como discriminatório, seletivo e “protetor” dos interesses das camadas dominantes, o primeiro passo é manter visível esta perspectiva que a constitucionalidade oferece como principio de interpretação. Isso nos remete para uma situação de mudanças e transformações ocorridas e das quais o direito não pode ficar imune. Em outros termos, não se pode permitir que a pobreza continue sendo criminalizada como se estivéssemos no século XIX ou nos anos 1940. Do contrário, devemos admitir: “Faoro ainda tem razão”.
Os Cadernos IHU Ideias nº 178, podem ser adquiridos na Livraria Cultural, no campus da Unisinos ou pelo endereço Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. A versão completa desta edição estará disponível neste sítio a partir de 19 de novembro de 2012 para download em formato PDF.
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Crime e sociedade estamental no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU