25 Setembro 2012
O documento Gaudium et Spes intitulava-se “sobre a Igreja no mundo contemporâneo". O fato de ter introduzido um "no" em vez de um possível "e" indica um aspecto irrenunciável: a Igreja é menor do que o mundo e isso a obriga, se quiser ser instrumento de salvação, a assumir a lógica do grão de mostarda.
A análise é do filósofo e biblista italiano Piero Stefani, especialista em judaísmo e ex-professor das universidades de Urbino e de Ferrara, em artigo publicado no blog Il Pensiero della Settimana, 23-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Alguns meses atrás, no fim de uma conferência, foi perguntado a Massimo Faggioli - um dos mais atentos estudiosos atuais do Vaticano II - qual havia sido o motivo principal que freou de modo tão vistoso o impulso conciliar que havia partido com vigor em meados dos anos 1960. A sua resposta foi indicar uma série de críticas movidas à Gaudium et spes (uma das quatro constituições do Vaticano II), movidas também por teólogos de primeira grandeza e certamente não pertencentes à categoria dos anticonciliatoristas. Não se pode negar a efetiva existência de críticas severas, mas se pode duvidar que elas tenham desempenhado um papel relevante na escolha feita, em altos níveis, de pisar no pedal do freio.
Uma avaliação global da constituição conciliar exigiria longos discursos. Apesar do fato de ser um proceder redutivo, algo do seu espírito pode ser extraído, no entanto, já a partir do corajoso título do documento Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo contemporâneo. O fato de ter introduzido um "no" em vez de um possível "e" indica um aspecto irrenunciável: a Igreja é menor do que o mundo e isso a obriga, se quiser ser instrumento de salvação, a assumir a lógica do grão de mostarda.
Esse "em" fala a linguagem de uma partilha posta sob a insígnia do que é comum, e se é preciso registrar uma predileção, ela deve ser reservada aos pobres: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias, as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo". Sobre esse ponto, então, nenhuma crítica foi expressa.
No entanto, nessas linhas iniciais, ressoa uma abordagem bem distante da que ouvimos hoje. Lá não se fala de um mundo destinado à ruína por ter virado as costas para a fé. Quando a análise é essa, a instância não é de compartilhar as alegrias e as dores dos outros; ao contrário, são os outros que devem voltar a assumir as nossas convicções (muito mais do que as nossas práticas).
Em última análise, as lideranças da Igreja Católica recomeçaram a falar do modo típico de quem se encontra, apesar da sua vontade, no mundo contemporâneo, isto é, aqueles que são obrigados a agir em um contexto caracterizado por uma crescente falta de fé (discurso, na realidade, constantemente repetido ao menos desde que essa história começou, há mais de dois séculos, que continuamos a chamar de contemporânea).
"Há uma teoria que está adquirindo um consenso generalizado no mundo ocidental, segundo a qual os males que afligem as várias nações se devem ao declínio da fé religiosa". Ninguém se admiraria de encontrar essas palavras em um recente documento do dicastério vaticano para a promoção da nova evangelização. Com efeito, são as palavras iniciais de um artigo escrito em 1956 por Bertrand Russell (é desnecessário dizer que o filósofo elaborou o seu artigo justamente para refutar a tese).
A referência é significativa; sem dúvida, os padres conciliares conheciam, por força das circunstâncias, a visão segundo a qual o declínio da sociedade era fruto da diminuição da prática religiosa. Esse julgamento obriga a falar de Igreja e mundo contemporâneo. Com todos os seus limites objetivos e todas as suas ingenuidades otimistas, a Gaudium et spes rompeu com esse esquema, desejando, em um sentido positivo, uma "mundanização" solidária da Igreja.
O ponto crucial está aqui: quando se apreciam os valores próprios do mundo contemporâneo, incluindo a liberdade de pensamento e de expressão, e a democracia política, somos obrigados a medir uma distância não componível com o modo pelo qual a Igreja Católica gere a sua própria vida interna. Lá ainda têm pleno curso um princípio hierárquico e um controle doutrinal "pré-contemporâneos", objetivamente antitéticos aos princípios acolhidos como positivos pela própria Igreja em relação com a sociedade.
De fato, o modo de agir eclesiástico ainda é caracterizado mais por um "e" do que por um "no". No lugar da visão segundo a qual a Igreja era definida como uma societas perfecta (própria do '"e"), sucedeu-se, com o Concílio, uma eclesiologia do "povo de Deus" imposibilitada, por causa da sua natureza hierárquica, de assumir uma visão totalmente democrática em seu interior. Isso explica porque o autêntico encalhamento da aplicação conciliar está ligado, no Ocidente, ao espírito de 1968. Ele também entrou, em parte, nas comunidades eclesiais. Por isso, uma autoridade que se declarava legitimada apenas com base no fato de ser constituída como tal também foi largamente exposta à "contestação". Em outras áreas do mundo onde os pobres, prediletos em palavra, eram bem mais numerosos, falou-se sobretudo de "libertação" e de "base" - ambos os termos carregados de ressonâncias políticas. Para estar à altura de um desafio, indubitavelmente exposta a excessos, era preciso assumir plenamente a perspectiva do "no". Isso não aconteceu.
O Vaticano II, também por causa das dinâmicas do seu desenvolvimento, em muitas de suas diretrizes, assumiu uma dinâmica de mediações entre o velho e o novo. A ambiguidade envolveu, em nível de recepção, a polarização das dinâmicas: de um lado, afirmou-se que, para ser fiéis ao Concílio, era preciso ir além da sua letra; de outro, declarou-se que era preciso voltar a antes dele, ou seja, a vê-lo como um momento de continuidade e não de ruptura.
Essa última opção representa a atual hermenêutica oficial da hierarquia católica. Ela repropõe a linguagem do "e". Com isso, a hierarquia eclesial condena a si mesma à esterilidade no anúncio e permanece descoberta contra escândalos próprios de uma societas que, longe de ser perfecta, encontra-se, de fato, mundanizada nos seus costumes e, portanto, pouco crível nos seus ensinamentos.
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Igreja ''no'' ou ''e'' o mundo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU