24 Setembro 2012
Seguir a dialética entre hermenêutica da continuidade e hermenêutica da ruptura parece ser enganador: ambos os elementos estão presentes nos mesmos documentos conciliares.
A opinião é de Daniele Menozzi, professor de história contemporânea na Scuola Normale Superiore di Pisa, na Itália. Publicou diversos livros sobre a relação entre catolicismo e sociedade na era contemporânea, entre os quais Chiesa, pace e guerra nel Novecento. Verso una delegittimazione religiosa dei conflitti (Il Mulino, 2008) e Chiesa e diritti umani. Legge naturale e modernità politica dalla Rivoluzione francese ai nostri giorni (Il Mulino, 2012).
O artigo foi publicado na revista Adista Notizie, n. 32, 15-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No rastro da interpretação do Concílio Vaticano II proposta por Bento XVI no célebre discurso à Cúria Romana no dia 22 de dezembro de 2005 ("duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos": a primeira é a "hermenêutica da descontinuidade e da ruptura", a segundo é a "hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade"), o debate sobre esse evento foi hegemonizado pelo confronto entre hermenêutica da ruptura e da continuidade.
Ruptura ou continuidade?
No entanto, podemos nos perguntar se essas categorias estão mais ligadas às perspectivas de política eclesiástica daqueles que as defendem do que à vontade de restituir o efetivo significado histórico do que aconteceu então. Da parte vaticana, as repetidas tentativas de chegar a um acordo com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que, herdeira de Dom Lefebvre, permaneceu em intransigentes posições anticonciliares, deixam entender suficientemente o uso político da referência à continuidade.
Por outro lado, em alguns ambientes "progressistas", a reivindicação da "reviravolta epocal" representada pela cúpula ecumênica constitui o caminho com que se tentou legitimar um reformismo eclesial, mais ou menos radical, mas muito pouco na letra dos documentos então aprovados (não por acaso a referência ao "espírito do Concílio" se torna aqui a chave para atribuir à assembleia aquilo que, nas suas determinações oficiais, é difícil de encontrar).
Apelos reformistas
A meio século do Vaticano II, a análise desse episódio já pode ser subtraído das avaliações que têm as suas raízes em escolhas políticas, alheias a um apaixonado interesse pelo seu preciso conhecimento histórico. Obviamente, a exploração atualizante do Concílio é de certa forma inevitável: mas se trata de manter diferenciados os planos (propagandístico/polêmico/apologético ou crítico-científico) em que se pretende colocar o discurso. Não é possível em um espaço restrito apresentar uma aproximação a esse acontecimento que responda aos rigorosos cânones da historiografia. No entanto, pode-se tentar definir algumas hipóteses interpretativas em torno das quais seja possível trabalhar para verificar o seu fundamento e melhor articular o seu porte cognoscitivo.
Um primeiro elemento refere-se à razão geral que levou João XXIII a convocar o Concílio e os padres a intervir com intensa participação. Como emerge de diversas indicações, tratava-se de atualizar as posições da Igreja. Era generalizada a percepção de que os esquemas de julgamento e de intervenção elaborados a partir da Contrarreforma, particularmente depois da Revolução Francesa, e pouco a pouco postos em um serrado confronto com o devir do mundo moderno, já eram inadequados para assegurar à Igreja uma eficaz presença entre as pessoas.
Fixados na contraposição aos princípios da modernidade e na utilização de todos os seus instrumentos em vista da reconstrução de uma sociedade cristã, em que cabia ao papado definir as instituições fundamentais da comunidade eclesial e da vida civil, essas orientações, sobretudo aquelas herdadas do intransigentismo do século XIX, já pareciam inaptos para uma ação pastoral que, segundo o mandato apostólico recebido pelo fundador, devia assegurar à instituição eclesiástica uma projeção universal.
Com efeito, no plano quantitativo, o catolicismo mostrava em nível planetário uma estagnação e também, ao menos em certas áreas, um retraimento: para reencontrar a capacidade de proselitismo e de expansão, era necessária, portanto, uma revisitação das posições tradicionais. Só uma oportuna adequação da sua proposta ao ser humano contemporâneo capacitar a Igreja a dar aquele "salto à frente" que novamente a tornaria protagonista de um decurso da história que, lenta mas inexoravelmente, parecia marginalizá-la.
Desdobramento dos trabalhos
Um segundo aspecto concerne às dinâmicas que, na realização desse programa, atravessaram o conjunto dos mais de 2.000 padres que se reuniram em Roma vindos de todos os continentes. Foram múltiplas: do embate entre assembleia e Cúria pela direção dos debates conciliares, às complexas relações entre portadores de instâncias particulares, geopolíticas como religiosas, e defensores de perspectivas gerais; da dialética entre exigências de governo da cúpula ecumênica e instâncias dos vários grupos de pressão que haviam se agregado na sala aos conflitos sobre as modalidades de utilização dos agentes externos, em primeiro lugar os meios de comunicação de massa, que podiam, e às vezes queriam, condicionar o andamento dos trabalhos.
Mas um dado parece logo se sobrepor a tais polaridades: a ruptura entre aqueles (a maioria dos padres, embora dividida em temas individuais) que consideravam que era preciso superar a herança do intransigentismo dos séculos XIX-XX sobre os vários assuntos em discussão – a liturgia, a concepção da Igreja, o papel da Bíblia, a relação com as outras religiões, as relações com a sociedade contemporânea, a função dos sacerdotes e dos leigos etc. – e aqueles (uma minoria, cuja consistência variava de acordo com as questões) que reputavam, ao invés, que tal herança pode ser revista, mas somente para torná-la palatável ao ser humano moderno, sem questionar, portanto, os fundamentos basilares.
Papel de Paulo VI
Nessa discriminação enxerta-se um terceiro e decisivo fator: a vontade de Paulo VI de conduzir os debates da assembleia, muitas vezes complicados, confusos e repetitivos, a um resultado positivo. Para isso, certamente era preciso evitar as manobras dilatórias e obstrucionistas dos setores conservadores que apontavam para o adiamento ou a suspensão da assembleia; mas também era necessário chegar a um compromisso: a votação de documentos que reunissem, senão a unanimidade, a mais ampla maioria possível.
Nessa ótica, entendem-se as inúmeras mediações, promovidas pelo pontífice, que permitiram a inserção nos esquema em discussão de reivindicações, sugestões, indicações provenientes da minoria. Poder-se-iam enumerar os casos em que – em particular sobre as questões mais controversas, por exemplo a Declaração sobre a Liberdade Religiosa – a intervenção papal, embora salvaguardando uma estrutura geral do texto voltado à atualização, conduzia à acolhida de especificações e de distinções sustentadas pelos setores preocupados com a mudança.
Quando – é o caso, por exemplo, da Nota explicativa praevia à constituição sobre a Igreja, Lumen Gentium, com que se reservava ao papa a faculdade de escolher se se recorreria ou não à colegialidade no governo da Igreja universal, esvaziando de fato a deliberação da assembleia – a operação não parecia suficiente, foi o próprio pontífice que sobrepôs uma declaração pessoal sua ao esquema votado na assembleia, para permitir uma leitura aceitável dele àqueles que havia se autoproclamado como guardiães da tradição.
Podemos assim identificar no sinal da ambivalência o caráter geral do conjunto das constituições (quatro), decretos (nove) e declarações (três) que, em dezembro de 1965, eram aprovados pela assembleia e promulgadas pelo papa. Sem dúvida, é verdade que a orientação geral de tais textos era direcionada para a atualização, mas apenas em alguns lugares uma real superação da tradição intransigente havia sido alcançada, e, muitas vezes, justamente nesses pontos, às proposições que levavam a um abandono dessa herança, eram justapostas frases que, por outro lado, constituam uma confirmação sua.
Portanto, era evidente que caberia a quem detinha as rédeas do governo da Igreja determinar o endereço que assumiria a concreta aplicação de deliberações conciliares que não pareciam ser unívocas. Paulo VI assumiu a perspectiva da "inovação" contraposta à da "reforma", ou seja, leu no Concílio uma intenção geral de rejuvenescimento da Igreja que não mudava as duas estruturas de fundo, mas se voltava a uma mudança "moral, pessoal, interior" dos fiéis.
Uma reviravolta fracassada
À luz dessas considerações, pode-se concluir que seguir a dialética entre hermenêutica da continuidade e hermenêutica da ruptura parece ser enganador: ambos os elementos estão presentes nos mesmos documentos conciliares, em que mesmo o acento predominante sobre a renovação, no entanto, é contrabalançado por referências à persistência de formulações do passado.
Além disso, parece ser vazio o paradigma historiográfico proposto pelos tradicionalistas que, recebendo cada vez mais consentimentos maiores e influentes, atribuem ao Vaticano II o aprofundamento de uma catastrófica crise eclesial. O Concílio havia sido chamado para enfrentar carências e atrasos com uma atualização que, justamente graças às resistências conservadoras, não foi completamente concluída: as razões do "salto à frente" fracassado podem ser identificadas precisamente no fato de haver fracassado a reviravolta necessária para alcançar tal objetivo.
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Vaticano II: o "salto à frente" fracassado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU